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Piter Salvatore
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Pesquisa denuncia vida de detentas na Penitenciária Consuelo Nasser, em Aparecida de Goiânia

De acordo com o Relatório de Informações Penais (Relipen), do primeiro semestre de 2024, Goiás registra…

mulheres presas em celas físicas

Destas, 111 cumprem pena em regime fechado na Penitenciária Feminina Consuelo Nasser (PFCN), situada no Complexo Prisional Policial Penal Daniella Cruvinel, no Distrito Agroindustrial de Aparecida de Goiânia.

A pesquisadora, advogada e especialista em Direito Penal, Lina Martins Rezende, visitou a unidade para entrevistar dez detentas com idades entre 21 e 60 anos. Os relatos coletados serviram de base para uma crítica à integridade dos Direitos Humanos no sistema penitenciário brasileiro. O estudo foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (PGIDH), com abordagem teórica e prática.

Na análise, Lina mobiliza fundamentos do marxismo, da criminologia crítica feminista e de conceitos jurídicos para discutir a realidade das mulheres em conflito com a lei. Para ela:

A complexa situação de mulheres em delinquência é problematizada pela desigualdade social criada e reforçada pelo capitalismo, que possui como raiz fundamental o racismo sistêmico e o patriarcado, braços fortes que demonstram a falência do direito penal e do sistema prisional como ferramentas de contínua violação de direitos humanos das mulheres”.

Foi a primeira investigação empírica realizada dentro do presídio após a Pandemia de Covid-19, embora os primeiros passos tenham sido na quarentena. A visita aconteceu em 02 de agosto de 2022, iniciou-se às 16 horas e foi concluída às 20 horas e 30 minutos do mesmo dia. O tempo de cada entrevista se estabeleceu entre 15 e 20 minutos, em média, com apenas uma exceção, que ultrapassou o tempo de 40 minutos. Durante a visita, a pesquisadora, as funcionárias e as detentas usaram máscaras e álcool em gel, seguindo os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde.

A autora do estudo comenta que a articulação com o presídio foi um processo acessível, embora existissem ressalvas. Ela conversava diretamente com a diretora da penitenciária e afirma que o Centro de Direitos Humanos possui estudantes inseridos em carreiras policiais, o que criou pontes entre a pesquisa e a Polícia. A diretora orientou a estudante nos procedimentos administrativos e na documentação necessária para pesquisa de campo. A pesquisadora não sentiu resistência por parte da administração do presídio, exceto em alguns contatos por telefone.

Uma mulher de cabelos lisos e avermelhados com franja est falando em um microfone de mesa Ela usa culos de grau de armao metlica grande batom escuro e brincos pequenos Veste uma blusa preta de mangas compridas com cinto de ilhs prateados No brao esquerdo h uma tatuagem visvel com um desenho em estilo de chamas ou fumaaEla gesticula com a mo esquerda enquanto fala aparentando estar argumentando ou explicando algo sua frente sobre a mesa de madeira esto um notebook aberto cadernos papis e canetas Ao fundo v-se mais microfones e cadeiras vazias sugerindo que ela participa de uma audincia reunio ou sesso oficial possivelmente em um espao legislativo ou institucional
Lina Rezende em audiência pública.
Foto: arquivo pessoal.

Todas as entrevistas ocorreram na biblioteca do presídio, “um espaço aberto, customizado para questões de leitura, e que foge do aspecto clássico de prisão”, como descreve a professora. Lina não chegou a entrar nas celas devido ao foco da pesquisa, que não consistia na análise predial, e sim na coleta dos relatos.

Durante o processo de escolha das fontes, a autora conta que a intenção foi abarcar uma “maior diversidade de crimes cometidos”. Ela entrevistou mulheres sentenciadas pelo crime de tráfico de drogas, latrocínio, roubo, homicídio qualificado e estupro de vulnerável. Outro dos objetivos, mais primordial, foi conhecer as histórias de vida das mulheres retidas no sistema prisional local, tocando em aspectos como a estrutura social, o caminho até a efetivação do crime e a diversidade da violência causada.

O infogrfico apresenta dados coletados em 2 de agosto de 2022 sobre as mulheres presasMostra a quantidade de filhos das detentas 26 mulheres no tm filhos entre as demais 349 tm 2 filhos 233 tm 1 filho 221 tm 3 filhos 151 tm 4 filhos e 23 tm 5 filhosEstado civil 482 so solteiras 116 esto em unio estvel 09 so separadas e 348 no informaramGrau de instruo a maioria no informou o nvel de escolaridade entre os que informaram predomina o ensino fundamental incompleto seguido pelo ensino mdio incompleto e completo H poucos casos de ensino superior incompleto ou completo e analfabetismo
A maioria das mulheres tem 2 filhos, é solteira e apresenta grau de instrução incompleto
Imagem: arquivo pessoal da pesquisadora.


PERCURSO

Entre as 111 mulheres presas, 17,1% se declararam brancas, 9% pretas, 36,9% pardas, 0,9% amarelas e 36% não informaram a cor ou etnia. Não há dados sobre a presença de mulheres indígenas. De acordo com a especialista, os dois últimos dados revelam uma lacuna a ser superada.

Mostra que havia 111 mulheres presas em regime fechado na penitenciria em 2 de agosto de 2022Questes raciais 36 no informaram 369 se declararam pardas 171 brancas 9 pretas e 09 amarelasFaixa etria a maioria das idades no foi informada entre as idades informadas a maior parte est entre 25 a 34 anosDoenas sexualmente transmissveis IST 1554 das mulheres tm sfilis 333 tm hepatite e 222 tm HIV
A maioria das mulheres apresenta perfil racial negro, faixa etária não informada.
Imagem: arquivo pessoal da pesquisadora.

“A diretoria relatou que há uma dificuldade na autodeclaração racial das mulheres ao entrar no sistema prisional, uma vez que elas têm dificuldade na autopercepção, o que explica a alta taxa de detentas sem informação sobre sua cor/etnia. Esse cenário leva a uma problemática metodológica sobre a verificação dos dados reais diante da autodeclaração potencialmente equivocada e da ausência de informação e [re]conhecimento sobre raça de uma grande parte das mulheres presas”.
Página 61 da dissertação.

Com relação à faixa etária, são seis mulheres entre 18 e 24 anos; 18 entre 25 e 29 anos; 19 entre 30 e 34 anos; 21 entre 35 e 45 anos;  sete entre 46 e 60 anos; duas entre 61 e 70 anos e 38 mulheres que não possuem informações de idade. Esta última situação, para a advogada, está “próxima à indigência”.

O perfil das presas na Consuelo Nasser tem semelhanças com a situação das detentas no estado de Goiás. Confira o infográfico:

Dissecando o Sistema Prisional FEMININO em Goiás de Piter Salvatore


CORRENTES

Segundo Lina, “quase todas elas [as mulheres presas] foram para essa realidade criminal por conta dos seus maridos”. Os cônjuges e parceiros de algumas das detentas já estavam marginalizados, ligados ao crime ou mesmo faccionados. Essa associação também afetou as parceiras, que adentraram a este universo por motivações de poder, status e prestígio dentro das próprias relações afetivo-matrimoniais.

Ainda segundo a autora do estudo, “o tráfico de drogas não era o principal crime em que elas se encontravam condenadas, muito embora metade delas tinham alguma dependência química ou já tivessem experiência com o comércio de drogas”.  Além disso, mais da metade das mulheres passou por violência doméstica e familiar, um histórico reincidente, e os danos do racismo também foram um ponto levantado pelas entrevistadas.

Apesar da realidade do presídio Consuelo Nasser, de acordo com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, ONG que atua na defesa dos direitos das mulheres estrangeiras em conflito com a lei, o encarceramento feminino no país está diretamente ligado ao tráfico de drogas.

“No Brasil, entre 2005 e 2014, o número de mulheres presas por delitos relacionados a drogas aumentou 290%. A maioria delas possui um perfil parecido: baixa escolaridade, vive em condições de pobreza e é responsável pelos cuidados de filhos, filhas, jovens, pessoas idosas ou com deficiência. O envolvimento com o tráfico de drogas surge grandemente como uma forma de geração de renda”.

Sobre os episódios de racismo, Lina ainda destaca que, embora as presas não tivessem queixas de violação de direitos humanos básicos, as falas divergiram entre as detentas brancas e negras. “As mulheres negras comentam que havia situações de racismo por parte das judiciais penais”, diz. Enquanto isso, submetidas a mesma pergunta, entre as mulheres brancas, “nenhuma teve essa alegação”, comenta a advogada.

Dados do Relatrio de Informaes Penais de 2024Mostra que a populao carcerria no Brasil  de 663387 pessoas em celas fsicasEm Gois so 20364 pessoas presasH bandeiras do Brasil e do estado de Gois como ilustrao


MARCAS

“Elas são abandonadas naturalmente” afirma a pesquisadora, comentando sobre a solidão das entrevistadas. À época, a pandemia de Covid-19 impossibilitou que as visitas acontecessem de forma regular. Porém, mesmo após o final da quarentena, as visitas permaneceram baixas. Entre as mulheres que são mães, nenhuma delas alegou vontade de receber os filhos no presídio, receosas com o convívio das crianças no local. Em relação aos cônjuges e parceiros, a possibilidade de visita era quase nula, pois a maioria deles estava morta ou presa.

Várias silhuetas de mãos erguidas para o alto em meio a silhuetas de arame farpado, como se pedissem socorro.
O isolamento e a solidão afetam a saúde psicológica das presas.
Ilustração: Pixabay

Lina observou que as entrevistadas também enfrentavam complicações subjetivas, fruto das experiências vividas no ambiente penitenciário. O isolamento e a escassez de atividades diárias foram frequentemente mencionados como queixas, assim como a dificuldade de acesso à terapia regular. A professora destacou o apelo de uma das entrevistadas, que comentou sobre a importância de uma maior presença dos direitos humanos no contexto da penitenciária.


GAIOLA

Segundo o site da Polícia Penal do Estado de Goiás, a Penitenciária Consuelo Nasser foi o primeiro presídio feminino construído no estado. Inaugurada em 1985, a unidade foi instalada em frente ao Centro de Atividades Industriais do Estado de Goiás (Cepaigo), autarquia criada durante o governo de Jânio Quadros, na gestão do governador Mauro Borges. As obras do Cepaigo começaram em 1959, em uma fazenda situada em Aparecida de Goiânia.

A penitenciária recebe esse nome em homenagem à advogada, jornalista e ativista feminista Consuelo Nasser. Natural do Rio de Janeiro, ela se mudou para Goiânia em 1959, acompanhada do tio Alfredo Nasser, que na época havia sido empossado deputado federal. Sua trajetória foi marcada pela luta pelos direitos das mulheres e pela defesa da comunicação e informação no jornalismo goiano.

A fotografia em preto e branco mostra uma mulher sorridente em um retrato posado Ela tem cabelos escuros curtos e volumosos penteados para trs e usa brincos de argola pequena e colares finos Sua roupa inclui uma blusa clara de mangas curtas com um colete escuro sobreposto que parece ter detalhes bordadosA mulher tambm usa uma pulseira no pulso esquerdo e tem preso  roupa um pequeno microfone de lapela sugerindo que poderia estar participando de uma gravao ou entrevista Seu sorriso  discreto e acolhedor e o fundo da imagem  liso e neutro destacando seu rosto e expresso serena
A ativista e jornalista Consuelo Nasser
Foto: Carla Monteiro

Consuelo foi uma das fundadoras do Centro de Valorização da Mulher (CEVAM), que atualmente leva seu nome, e também integrou a redação do semanário Cinco de Março, publicado no mesmo ano da sua chegada à capital, e que rememora uma tragédia ocorrida em frente ao Mercado Central, durante manifestações estudantis.


RASTROS

Unindo marxismo, criminologia e feminismo, a dissertação parte do entendimento de que a criminologia, enquanto ciência, estuda os crimes, as vítimas e o controle social, tendo se fortalecido nos anos 60, com a prerrogativa de criar políticas públicas mais eficazes e estratégias de prevenção. Contudo, a pesquisa busca se relacionar com a criminologia crítica, que, segundo a Mestra em Direitos Humanos, difere-se da criminologia feminista por propor mudanças estruturais, ao invés de se restringir aos limites da legislação.

Na perspectiva da professora, a criminologia crítica, acredita em uma “revolução do direito penal”, conceito trabalhado pelo teórico Cirino dos Santos. O Direito Penal, por sua vez, define os crimes, as penas, e regula o poder punitivo do Estado. No ponto de vista de Lina, a criminologia crítica é fundamental para “entender as questões criminológicas que afetam as mulheres”, justamente por propor “um olhar crítico às instituições e como essas elas operam”.

Representao grfica da criminologia como rea de estudoDefine criminologia como a cincia que estuda os crimes as vtimas e o controle socialMostra a conexo da criminologia com a Revoluo do Direito Penal que define crimes penas e o poder punitivo do Estado Criminologia Crtica e Criminologia FeministaA Criminologia Feminista analisa o crime o sistema penal e a violncia sob a perspectiva de gneroO layout usa setas cones de martelo de juiz algemas e smbolos de gnero feminino

De acordo com o World Prison Brief de 2023, o Brasil permanece como o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Atualmente, são mais de 850 mil pessoas presas, distribuídas entre 1.381 unidades estaduais, cinco federais e em outras carceragens, além de casos de prisão domiciliar. Os dados foram divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por meio do Observatório Nacional dos Direitos Humanos.

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