- Goiás em cartaz: uma prática em constante movimento - 10 de maio de 2025
Do faroeste regional ao cinema universitário, Goiás revela uma produção audiovisual diversa, em que crescimento e cada vez mais conectada ao seu território.
O cinema tem se consolidado como uma ferramenta essencial para a difusão da cultura goiana, ao ampliar a circulação dos saberes e práticas locais uma vez que essas produções são feitas por cineastas que trazem traços típicos do estado. Esse papel se destaca especialmente pelo caráter documental presente na maioria das produções do estado, embora as obras de ficção também estejam ganhando cada vez mais espaço. De acordo com estudos divulgados pelo Governo de Goiás, a economia criativa já representa 6,9% do PIB estadual. Esse crescimento reforça o potencial do setor audiovisual como motor cultural e econômico da região.
Publicado pelo Governo de Goiás, o texto “Relatório de Indicadores Audiovisual 2025” divulga os avanços que impactaram o audiovisual goiano com a aplicação da Lei Federal Paulo Gustavo. “Com um investimento superior a R$ 52 milhões, o mecanismo se tornou um marco significativo para a cultura goiana, ao proporcionar novas oportunidades e fomentar a produção audiovisual em diversas linguagens.”
Outro importante fator para a movimentação do audiovisual goiano foram as produções universitárias. Nesse cenário, os estudantes de disciplinas de audiovisual ganham espaço para se testarem enquanto cineastas, o que faz com que novos produtos sejam realizados constantemente. A Universidade Estadual de Goiás (UEG) foi a pioneira na criação de uma graduação em Cinema e Audiovisual no estado, no ano de 2006. Além disso, em 2019, o Instituto Federal de Goiás (IFG) também criou o curso Bacharelado em Cinema e Audiovisual.
A primeira produção cinematográfica registrada no estado de Goiás foi “A Fraude”, com direção de Jacerlan de Jesus, em 1968. Desde então, esse setor passou por constantes mudanças e crescimentos, isso incentivado por políticas públicas, como a lei Federal Paulo Gustavo (conforme citado anteriormente), editais de fomento e festivais como o FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, realizado em Goiás Velho desde 1999. O FICA consolidou-se como um dos principais eventos da América Latina a tratar da temática que impulsiona o cinema ambiental.
Visibilidade do cinema goiano
Confira um painel interativo para saber mais sobre algumas produções feitas no estado de Goiás, ao clicar na capa do filme, a sinopse será aberta: https://linkdireto.co/F0kzUm
A visibilidade das produções cinematográficas feitas em Goiás tem crescido consideravelmente, impulsionada não apenas pela entrega constante de obras cada vez mais qualificadas, mas também por um circuito sólido de mostras e festivais que fortalecem o setor.
Um dos maiores destaques nesse cenário é a Mostra O Amor, a Morte e as Paixões, considerada uma das principais vitrines do cinema em Goiás. Realizada anualmente em Goiânia, a mostra se destaca por reunir uma seleção diversificada de filmes, tanto nacionais quanto internacionais, com foco especial em produções autorais, independentes e goianas, fora do circuito comercial tradicional. O evento contribui significativamente para o fortalecimento da cena local, oferecendo visibilidade a cineastas da região e aproximando o público de obras que dificilmente chegariam às salas convencionais.
Além das exibições, a programação da mostra inclui debates, oficinas e encontros entre realizadores, críticos e espectadores. Essas atividades complementares são fundamentais para a formação de público e para o estímulo ao pensamento crítico sobre o audiovisual, consolidando o evento como um espaço de reflexão, aprendizado e valorização da produção cinematográfica fora dos grandes centros.
Em uma conversa com Lisandro Nogueira, jornalista, doutor em cinema e jornalismo pela PUC/SP e professor de cinema desde 1989 na UFG, ele desenvolve sua percepção sobre a visibilidade conquistada pelas produções goianas.
“É uma construção que vem dos anos 80 ou 70, que teve lá o João Bennio, lá atrás, com os filmes dele. É uma construção. Porque o cinema brasileiro já é difícil, tem um mercado difícil. Mas, nos últimos cinco anos, esse mercado se ampliou, com as redes de incentivo, com o streaming. Então, agora também nós temos um mercado que pode ser promissor para o cinema feito em Goiás. Porque ter um filme ou outro é bom, mas é melhor ter uma coisa perene, entende? Mas, se você pegar a minha trajetória e a minha observação, ele só tem melhorado, ele está crescendo, só que é lento. Mas, para quem vem dos anos 80, igual eu, é um crescimento importante.”
Apesar dos avanços em termos de popularização das produções goianas, a baixa distribuição continua sendo um dos principais gargalos enfrentados pelo setor audiovisual, justamente por deixar esses produtos em difícil acesso. Sobre isso, Lisandro também ressalta a importância de taxar as grandes plataformas de streaming para financiar o cinema brasileiro como um todo.
“Oeste Outra Vez”
Escrito e dirigido por Erico Rassi, “Oeste Outra Vez” é um longa-metragem que se passa no estado de Goiás. O filme retrata a história de dois homens abandonados por uma mulher, que, a partir disso, começam uma grande rix isso constrói um retrato da masculinidade a partir de uma perspectiva pouco abordada pela sociedade.
Confira a sinopse: “No sertão de Goiás, homens brutos que não conseguem lidar com suas fragilidades são constantemente abandonados pelas mulheres que amam. Tristes e amargurados, eles se voltam violentamente uns contra os outros.
Trailer disponível em: https://youtu.be/AWhPIY76FFQ?si=XVae6HH53PF7scRG
O filme representa um marco na história recente do cinema goiano justamente por unir a estética clássica do faroeste com questões contemporâneas do estado. A produção se destaca não só pela narrativa, mas também pelo cuidado visual e pela forma como ressignifica símbolos da cultura regional. Ao circular por festivais e ser bem recebido pelo público e pela crítica, “Oeste Outra Vez” amplia a visibilidade do audiovisual goiano e reforça a força criativa das produções no estado.
Para nos aprofundarmos um pouco mais nas noções de Oeste Outra Vez, preparamos uma entrevista com a mente por trás do filme. Confira, na íntegra, a entrevista com Erico Rassi.
Em Oeste Outra Vez, você trabalha temas muito fortes como solidão e pertencimento. Como surgiu a ideia desse projeto e o que te motivou a contar essa história?
“ ‘Oeste’ é uma continuação de uma pesquisa que venho fazendo, que investiga personagens masculinos vivendo em regiões isoladas, dentro de uma abordagem de um cinema de gênero – no caso do ‘Oeste’, o faroeste. Essa pesquisa começou com meu filme anterior, chamado ‘Comeback’, que foi filmado todo na periferia de Anápolis. No caso dos personagens masculinos de ‘Oeste’, era importante pra mim mostrar esse lado frágil e solitário desses homens, que pagam o preço de serem quem são. Então eu parti dessa premissa, que era retratar esse universo onde os homens são ao mesmo tempo violentos e frágeis, e mesmo sendo sempre abandonados pelas mulheres que amam, não conseguem mudar ou evoluir, porque o ambiente em que eles vivem chancela essa violência e rechaça qualquer tipo de fragilidade.”
Como você enxerga o atual momento do cinema goiano em termos de produção, visibilidade nacional e apoio (seja público ou privado)?
“O cinema goiano vem cada vez mais marcando presença em festivais nacionais e internacionais, e além de realizadores já consolidados há ainda muita gente lutando para fazer seu primeiro longa. É certamente o melhor momento da cinematografia goiana, que chegou a ficar 40 anos sem produzir um longa-metragem. O desafio agora é consolidar esse momento e expandir toda a cadeia produtiva, para que a nossa produção se torne cada vez mais relevante.”
Quais são hoje os principais desafios para quem faz cinema em Goiás, tanto na produção quanto na distribuição dos filmes?
“Acho que o desafio maior é o da distribuição comercial, o que reflete um problema que atinge o cinema nacional como um todo. A questão da produção, em relação à quantidade de obras lançadas, está relativamente equacionada – ainda que seja necessária uma melhor distribuição de recursos para regiões de fora do eixo RJ/SP. Mas ainda é difícil para alguns filmes chegarem às salas de cinema, e mesmo quando chegam, terem uma distribuição que permita o acesso ao público, porque acontece também dos filmes serem exibidos em pouquíssimas salas e/ou horários ruins. Tivemos um filme goiano que ganhou o Festival de Tiradentes, que foi o ‘Vermelha’ do Getúlio Ribeiro, e que se eu não estiver enganado nunca conseguiu um lançamento comercial. Talvez fosse o caso de uma ajuda do poder público nesse sentido, através de linhas de incentivo à distribuição, porque é muito difícil romper a bolha cinéfila sem um suporte financeiro adequado.”
Você sente que o público local valoriza o cinema produzido no estado? Como foi o retorno do público goiano em relação a Oeste Outra Vez?
“O lançamento comercial de “Oeste” priorizou o estado de Goiás, com o filme sendo lançado primeiro por aqui, além de uma série de ações específicas que demandaram uma parte significativa da verba de distribuição. Mesmo assim, o desempenho ficou abaixo do esperado, e abaixo até mesmo da média de estados do Norte e Nordeste. Não sei se trata-se de uma questão de valorização – é importante reforçar que Goiás chegou a ficar mais de 40 anos sem produzir um longa metragem, então não há uma tradição de consumo do audiovisual produzido por aqui. É algo que tem que ser construído aos poucos, com uma produção mais constante e contando com esforços de todas as esferas para que as produções atinjam o maior número de espectadores.”
Na sua visão, o que diferencia a estética ou a narrativa do cinema goiano em relação a outras regiões do Brasil, e quais tendências você vê surgindo para o futuro?
“Não consigo identificar no cinema goiano uma unidade estética que caracteriza um movimento, ou que possa ser delimitado através de certos parâmetros formais. O que existe é um olhar que se volta para dentro, para as coisas que são daqui, o que por si só já é bastante forte. Mais importante que uma linha estética comum, é importante que a produção no estado se consolide e ajude a fortalecer o cinema feito fora do eixo RJ/SP, pois é fora do eixo que, na minha opinião, têm saído às narrativas mais interessantes recentemente.”
O consumo de cinema no estado de Goiás
Em meio às mudanças nos hábitos de consumo causadas pelos serviços de streaming, os cineclubes têm ganhado força como uma alternativa de consumo de cinema a partir de uma perspectiva mais coletiva e crítica em Goiás. Esses espaços funcionam não apenas como pontos de exibição, mas também como lugares de encontro e debate, o que fortalece a formação de público e estimula o pensamento sobre o audiovisual. Um bom exemplo é o Cineclube Mãe d’Ouro, organizado pelo coletivo Magnífica Mundi, na Faculdade de Informação e Comunicação da UFG.
O Cineclube Mãe d’Ouro promove sessões com filmes de fora do circuito comercial (como as produções hollywoodianas), passando por uma curadoria que privilegia produções independentes e com temas ligados a questões relevantes e carentes na sociedade. Hayane Bonfim, coordenadora do Cineclube Mãe d’Ouro nos explica mais sobre o papel do cineclube para a valorização do cinema goiano.
“O Cineclube é essencial para servir como uma porta de entrada para esses filmes. Funciona como uma janela de exibição, ou seja, esses filmes não tem oportunidade de ir para um cinema comercial, um cinema de shopping, talvez possam ir para o Cine Cultura, mas não é sempre, porque o Cine Cultura geralmente tem outros filmes estrangeiros em cartaz, se tem mais espaço, mais demanda, enfim. O cinema precisa ser consumido assim, ou seja, precisa que as pessoas conheçam para que um dia elas possam ir ao cinema e comprar um ingresso, pagar um ingresso para assistir esses filmes. E o Cineclube é um espaço democrático, em que as pessoas podem assistir esses filmes sem pagar nada, então os curtas-metragens passados, por exemplo, no Cineclube Mãe d’Ouro, eles são excelente porta de entrada, porque eu estava lendo esses dias um artigo falando sobre o cinema goiano, e lá nesse artigo, eu não lembro exatamente o nome do autor, mas acho que é Thaís Oliveira, ela fala sobre a questão dos curtas-metragens realizados por diretores servirem como uma vitrine para que um dia eles possam fazer longas-metragens. Então, nem todo cineasta goiano produz longa-metragem, porque ainda não tem essa vitrine para poder adaptar recursos para produzir uma longa-metragem.”
Luana Sampaio, estudante de jornalismo da UFG, conta que começou a ter contato mais frequente com o cinema goiano a partir do Cineclube Mãe d’Ouro e da Mostra “O Amor, a Morte e as Paixões”. Segundo ela, o primeiro contato veio por indicações de filmes, mas foi por meio do Cineclube, em atividades e pesquisas, que ela passou a conhecer, de fato, a produção local. Esses espaços, segundo Luana, têm papel essencial para ampliar o acesso a filmes produzidos no estado e para criar conexão entre público e obra.
“O que mais me chama a atenção nessas produções goianas é esse olhar mais regional e mais intimista que mostra o nosso cotidiano, a nossa cultura de uma forma muito mais detalhada e certamente mais adequada também, sem aqueles estereótipos que muitas outras produções feitas fora colocam sobre o nosso estado. A nossa cultura também.”