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Suely Lima de Assis Pinto é graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (UFG), possui Mestrado em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação – UFG e Doutorado em História pela Faculdade de História – UFG. Suely tem experiência na área de Artes, em especial em: Arte e Educação, Teoria e História da Arte, Educação, Cultura e Processos Educacionais e Museologia.

Um currículo vasto e que permite a Suely discorrer com autoridade sobre as “manifestações” antidemocráticas ocorridas no dia 08 de janeiro de 2023, na qual bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso Nacional. Em suma, desrespeitaram a pátria brasileira, em virtude da não aceitação do resultado das eleições.

LN: Qual a importância da arte (obras e monumentos) para a sociedade brasileira?

Suely: A arte é extremamente importante, por meio da arte nos educamos enquanto seres sociais e históricos, nos humanizamos. Ao estarmos diante da arte, desenvolvemos um processo de empatia ou repulsa, conforme nossa formação cultural e histórica. Ela nos conduz a um diálogo que nos faz refletir sobre estar no mundo. A arte educa a partir de uma relação de estranhamento e distanciamento que possibilita ver de modo diferente aquilo que está no seu contexto imagético, sonoro, gestual, etc.

Quando estamos envolvidos por espaços culturais que não possibilitam esse estranhamento, como é o caso das midias sociais, há uma assimilação completa por tudo aquilo que nos é apresentado, ou seja, não há reflexão e tomamos aquilo como verdade. No caso atual do Brasil, a população passou 4 anos sendo impulsionada a acreditar que os elementos culturais, ao invés de educar, estavam desvirtuando as famílias, os jovens, com ideologias que poderiam afetar o futuro destino do Brasil.

Como conscientizar a população a respeito dessa importância? Qual o papel do governo?

Educar para arte. Mostrar a importância do Patrimônio Cultural e Histórico de toda a humanidade. São milhares de anos produzindo conhecimento que fazem parte da história da humanidade, conhecimento que nos conduziu a um processo civilizatório capaz de nos tornar responsáveis por um mundo muito melhor do que estamos vivenciando atualmente. [É preciso] Difundir conhecimento, possibilitar educação para todos e acesso da população à cultura de modo geral, conhecer e valorizar as culturas e saberes tradicionais. No caso das universidades, desenvolver projetos de extensão que atendam as comunidades mais longínquas, a periferia, aqueles que não conseguem pagar por alimentos dignos, que dirá cultura.

Várias obras de arte foram perdidas no ataque do dia 08/01. Podemos dizer que a falta de conscientização cultural do último governo foi um fator-chave para esses atos?

Com certeza. A sua política [de Jair Bolsonaro] foi a desinformação e inverdades espalhadas por fakenews. O setor cultural foi o mais atingido, desde o início do governo.

Um exemplo foi a exposição de artes visuais patrocinada pelo Santander, o “Queer museu”. Uma exposição que foi massacrada até seu fechamento. Como se ali tivessem obras destinadas a induzir a população ao erro, a não moralidade a partir de seus conceitos crassos sobre o que seja: cultura, família e sexualidade. A curadoria daquela exposição partiu de um conceito necessário de ser analisado, como a diversidade. Interessante que ao reunir as obras que dialogavam com os conceitos da exposição, muitas eram inclusive do início do século XX, ou seja, a arte já está nos mostrando que devemos nos atualizar nos conceitos de família e sexualidade há muito tempo. Obras que eram fruídas isoladamente em diferentes museus, mas ao serem conduzidas para uma exposição cuja temática era um tabu, passou a ser execrada por aqueles que seguem esse pensamento de extrema direita.

E é assim que vão construindo na memória de uma população desinformada que a arte é o inimigo deles (da família, da igreja, seja lá o que for em que acreditam… Pensamento daquele que prefere “um filho morto, a um filho gay”). Foram 4 anos de atraso em todas as áreas de conhecimento no Brasil.

Você acredita, então, que caso o governo anterior tivesse promovido a cultura durante a sua vigência, as obras de arte teriam “sobrevivido”?

Acredito. Os manifestantes (aqueles mais humildes que não sabiam a que estavam ali, ou o que defendiam na verdade) foram instruídos que era para acabar com tudo, principalmente as obras de arte feita por esse bando de sujeitos que devem ser banidos da face da terra [a frase é utilizada como uma sátira ao pensando dos golpistas]. Outros manifestantes eram instruídos e estavam ali como “amoladores de faca”, pegando um conceito de Luis Antônio Baptista. Este governo destruiu, não só a cultura, mas todo processo de conhecimento da humanidade, como é o caso das universidades e da ciência médica. Vacina passou a ser um caso de “maricas”. Tivemos um desgoverno que destruiu importantes políticas públicas, tanto culturais, quanto de gênero, por exemplo.

De todas as obras, qual foi a maior perda para o Brasil?

Difícil, todas são extremamente importantes, de artistas renomados e valores imensuráveis. Eu diria que o relógio do século XVII, de Balthazar Martinot. Há apenas dois exemplares no mundo, um deles no palácio de Versalhes. Pelo que soube ele não tem capacidade para ser restaurado, tamanha é a sua destruição. Uma obra de arte, com certeza, completamente destruída.

Nota da redação: De acordo com relatório feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não existe nenhum item que não possa ser recuperado, mas alguns exigem mais esforço, como é o caso do relógio Balthazar Martinot.

Não posso deixar de mencionar o incêndio no Museu do Ipiranga, em São Paulo, em 2021, como sendo uma perda irreparável para o patrimônio cultural brasileiro, já considerado um descaso pela cultura no governo Bolsonaro. O corte de verba total das universidades impedia ações de grande custo como era o caso da manutenção das estruturas elétricas e hidráulicas do prédio (um patrimônio) que abrigava o museu. As autoridades, no caso, o Ministério da Cultura e seus responsáveis, foram notificados sobre a gravidade da situação e não tomaram nenhuma providência. Essas pessoas deviam ser responsabilizadas criminalmente por essa e outras negligências.

Por que obras de arte tão importantes encontravam-se expostas em um local que se mostrou tão vulnerável de invasão e destruição?

Pelo que se pode observar, muitas delas foram presentes doadas aos diferentes governos ao longo da história do Brasil, como é o caso desse relógio doado a D. João IV e veio para o Brasil em 1808 com a Família Real. Ornavam o Palácio do Planalto. Arte em ambientes públicos também podem educar aqueles que não frequentam ambientes expositivos. No caso do Muro de Atos Bulcão, foi produzida para aquele espaço. Há outras em Brasília pensadas/elaboradas para os espaços que se encontram, como na Catedral de Brasília. No entanto, todo o espaço deveria ser protegido, com informações e talvez até ação educativa para que se conhecessem as obras e sua importância no contexto em que se encontravam. Não havia segurança nenhuma.

A obra Di Cavalcanti foi a mais mostrada pela mídia, qual o impacto do pintor para o país?

Di Cavalcanti está entre os pintores e pintoras modernos mais importantes. Seu trabalho é referenciado por estudiosos no Brasil e fora dele. Sua pintura, como é o caso dos e das modernistas brasileiros/as referenciam a cultura brasileira, mostram elementos de um Brasil até então desconhecidos pela arte brasileira (que na maioria das vezes traziam elementos europeus em seu contexto – neoclássicos). Isso faz de Di Cavalcanti um nome importante na história do Brasil.

A perda dessas obras causam impacto na sociedade brasileira?

Com certeza. Somos um país que é incapaz de valorizar e proteger seu patrimônio cultural.

Existem meios para recuperar as obras perdidas?

Sim e não. Muitas têm possibilidade de serem restauradas (ainda não está completo o diagnóstico de destruição das obras e a gravidade para cada uma). É um trabalho a longo prazo e com grande ônus para os cofres públicos, pois uma coisa é você restaurar uma obra danificada pela ação do tempo. Outra coisa é restaurar uma obra rasgada, quebrada ou amassada a marteladas pelo vandalismo, como ocorreu com esculturas de metal.

Nota da redação: O relatório produzido pelo Iphan detalha as obras que foram danificadas durante os atos antidemocráticos. Relatório Iphan.

Por fim, qual a importância do governo atual promover medidas voltadas à conscientização cultural e qual o papel da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, para a recuperação das obras destruídas?

O papel do atual governo é fundamental em todo o processo, não só de recuperação e segurança dessas obras, mas de todo o patrimônio cultural brasileiro, incluindo cultura material e imaterial. São fundamentais políticas públicas que transformem o Brasil num “canteiro de obras”. O processo educativo é fundamental para que se tenha sucesso tanto no caso de Brasília, como no caso do Museu do Ipiranga em São Paulo. E pelo que podemos observar, não é educar somente a população jovem, mas os adultos também, isso inclui aqueles que se infiltram no sistema político brasileiro sem nenhuma noção do que seja cidadania ou políticas públicas.

Margareth Menezes é antes de mais nada uma produtora de cultura, sabe a importância do processo de se pensar na valorização desse sistema. Ela precisa, antes de tudo, se acercar de uma equipe qualificada que possa lhe passar um diagnósticos de todo o sistema cultural brasileiro, incluindo Estados e Municípios. Pensar políticas públicas que obriguem as instituições governamentais e municipais a se responsabilizarem pela preservação cultural do seu entorno. Falo isso porque muitas vezes são pessoas nas diferentes comunidades que lutam, sem recurso nenhum, para divulgarem e preservarem o seu patrimônio cultural. Heróis anônimos, temos muitos nesse Brasil.

Imagem destacada: Foto por Senado Federal – Site Oficial

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