Mulheres no Automobilismo: a luta de uma minoria por representatividade e igualdade

Conheça a história de MULHERES que marcaram a História do Automobilismo em um cenário composto predominantemente por homens
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A primeira corrida de Fórmula 1 aconteceu em 13 de maio de 1950, no circuito de Silverstone na Inglaterra. Após setenta e dois (72) anos de história, por que não temos uma representante do sexo feminino competindo na categoria? Ao longo de décadas, as mulheres veem buscando o seu lugar no automobilismo e nessa trajetória destacam-se importantes figuras, desde as pioneiras até os dias de hoje, que abriram espaço para que outras tenham a possibilidade de se impor em um ambiente que é, predominantemente, composto por homens.

Maria Teresa de Fillipis: Primeira Piloto de Fórmula da História
Foto de Maria Teresa Fillipis por LAT Images

Maria Teresa de Fillipis nasceu no dia 11 de novembro de 1926, em Nápoles (Itália). Aos 22 anos, fez uma aposta com os seus irmãos, os quais não acreditavam que ela pudesse ser veloz em um carro. Maria Teresa aceita o desafio e ganha um Fiat 500, de presente de seu pai, dando início à sua história nas pistas. A primeira competição da qual participou foi o percurso Salerno-Cava dei Tirreni e, logo de cara, venceu a prova. Naquele momento, De Fillipis provou para os seus irmãos que era capaz de correr e, ao longo de sua trajetória no automobilismo, provaria para o mundo que uma mulher é capaz de ser piloto de corridas. A Napolitana, que decidiu seguir a carreira no universo das corridas, venceu diversas competições pela Itália e, então, foi contratada pela equipe Maserati.

Em 1958, estreou na Fórmula 1 em um Maserati 250F. A primeira corrida da qual participou foi o Grande Prêmio da Bélgica, em Spa-Francorchamp. A “Signorina F1”, como Maria Teresa ficou conhecida, se classificou em 19º lugar e acabou a prova em 10º, duas voltas atrás do líder Tony Brooks. Mesmo sendo a última a receber a bandeirada na corrida, foi um marco histórico para o automobilismo: a primeira vez que uma mulher largou na Fórmula 1. Ao longo de sua carreira, De Fillipis disputou cinco Grandes Prêmios e conseguiu se classificar para três deles, de acordo com levantamento de biografia pelo portal Projeto Motor.

No Grande Prêmio da França, de 1958, Maria Teresa foi proibida de correr pelo fato de ser mulher. Toto Roche, então diretor de provas, declarou em coletiva de imprensa: “uma jovem tão bonita como aquela não deveria usar nenhum capacete a não ser o secador do cabeleireiro”. De Filipis abandonou as pistas em 1959 e, a partir de 1979, deu continuidade à sua relação com o automobilismo através do International Club of Former F1 Grand Pix Drivers, chegando a ser vice-presidente do clube. Teve uma carreira breve, contudo, extremamente significativa, mostrando ser possível a presença de mulheres no automobilismo.

Vídeo de Maserati – Canal Oficial YouTube. Vídeo com legendas em inglês
Lella Lombardi: Única mulher a pontuar na Fórmula 1

Maria Grazia Lombardi (Lella Lombardi) nasceu no dia 26 de março de 1941, em Frugarolo (Itália). A paixão por corridas da menina começou na infância, quando teve uma breve passagem pelo Kart e, posteriormente, na Fórmula Monza. Já na Fórmula 3, Lella começou a se destacar e conquistou o vice-campeonato da categoria em 1968. Dois anos depois conquistou o título da Fórmula 850. A italiana passou pela Fórmula Ford Inglesa e Fórmula 5000, mostrando talento incontestável e chamando atenção pelo seu gênero, tendo em vista que não era algo comum na época.

Foto de Lella Lombardi por Getty Images

Em 1974, Lella estava inscrita no Grande Prêmio da Inglaterra, em Brabham. Lella se classificou na 29º posição e não conseguiu a vaga no grid daquela corrida. Em 1975, foi contrata pela March e fez sua estreia na terceira etapa do campeonato, ao se classificar em 26º e conseguir uma vaga no grid do Grande Prêmio da África do Sul, mas teve que abandonar sua primeira corrida devido a problemas no carro. Em sua segunda corrida, no Grande Prêmio de Barcelona, Lombardi conseguiu um feito histórico.

Na trágica corrida de Barcelona, Lella largou na 24º posição e conseguiu escapar dos incidentes que aconteceram na pista, se colocando na 6º posição. A prova foi marcada pela insegurança do circuito de rua de Montjuich e por incidentes, tendo Rolf Stommelen protagonizado o mais grave, quando perdeu a traseira e teve o seu carro arremessado por cima das telas. O piloto alemão saiu gravemente ferido e o acidente resultou na morte de quatro pessoas atingidas pelo carro. Após o ocorrido, o GP de Barcelona chegou ao fim na volta de 29, com a italiana entre os pontuadores.

Apenas metade da pontuação daquela prova seria válida, tendo em vista que não haviam sido completados ¾ da corrida (normas do regulamento da Fórmula 1). Lella marcou, portanto, apenas 0,5 pontos. Apesar da pontuação baixa, esse acontecimento tem um valor histórico extremamente relevante: Lombardi foi a primeira e única mulher a chegar à zona de pontos da Fórmula 1, de acordo com dados do quadro Histórias da F1 – Globo Esporte.

Em 1976, Lombardi perdeu a vaga na equipe March, sendo substituída por Ronnie Peterson. Ainda nesse ano participou da 24H de Le Mans, ficando na 20º posição geral. Em 1988, após importantes resultados nas corridas da Le Mans, abandonou as pistas e fundou a sua própria equipe, contudo, Maria Grazia Lombardi faleceu pouco tempo depois, em 3 de março de 1992, por decorrência de câncer.

Vídeo pelo canal Medi@MC – Entrevista com Lella após o GP da Suécia, legenda em inglês

Susie Wolff: Piloto de desenvolvimento da Williams
Foto de Susie Wolff por Williams

Susie Wolff, nasceu no dia 6 de dezembro de 1982, em Oban (Reino Unido). A britânica vem de uma família ligada ao automobilismo e começou a competir de kart ainda na infância, fazendo o caminho tradicional da maior parte dos pilotos. Participou da Fórmula Renault, Fórmula 3 e da DTM, onde construiu uma carreira e ficou por sete temporadas. Em 2012, se tornou piloto de desenvolvimento da Williams, participando de duas sessões de treinos livres pela equipe e quebrando um intervalo de 22 anos sem uma mulher participando de atividade de pista na Fórmula 1.

“Dirigir aqueles carros, fazer parte de uma equipe tão icônica como a Williams é uma oportunidade que serei eternamente grata. Eu ainda me lembro da pressão para as sessões [de treino livre], quando colocava o capacete, era uma boa oportunidade e havia a expectativa de que eu entregaria [bom desempenho]”, refletiu Susie Wolf no podcast “Beyond the Grid”.

Vídeo pelo canal Lewis – Onboard de Susie Wolff no GP da Alemanha

Para além das mulheres que conseguiram chegar na Fórmula 1, outras destacaram-se em importantes categorias do automobilismo, como é o caso de Odette Siko e Marguerite Mareuse, sendo a primeira equipe feminina a participar da Le Mans, em 1930, e conquistando bons resultados: sétima colocação geral no ano de estreia.

Janet Guthrie é outra importante mulher na história do automobilismo, sendo a primeira que se classificou para as 500 Milhas de Indianápolis, no ano de 1977, fato que casou mudança nas tradições da categoria. Tony Hulman na transmissão falou pela primeira vez: “Acompanhados da primeira mulher a se classificar para as 500 Milhas de Indianápolis, senhores, liguem seus motores”, de acordo com dados de motorsport.com em matéria sobre mulheres que fizeram história no automobilismo.

Foto de Janet Guthrie por IMS LLC

Em 1978, Guthrie obteve seu melhor resultado, chegando em nono lugar. Esse foi o melhor resultado de uma mulher nas 500 Milhas até o ano de 2000. “Eu montei e gerenciei a equipe sozinha [em 1978], com um orçamento de cerca de 5% do total de uma equipe grande que disputava a temporada inteira. Comprei o carro e os motores, contratei a equipe, aluguei os apartamentos e mesmo com alguns problemas, ainda terminei entre os dez melhores”, relatou Janet no evento que marcou sua entrada no Hall da Fama do Automobilismo Americano.

Mulheres no automobilismo: Além das pistas

O cenário do automobilismo não é caracterizado pela forte presença masculina somente dentro das pistas. Essa predominância também é uma realidade quando se fala de chefes de equipe, engenheiros, mecânicos, fiscais de pista e até mesmo quando se fala do jornalismo. O crescimento da presença feminina é uma realidade, contudo, ainda existe um longo caminho para atingir igualdade no esporte.

“Eu cresci consumindo corridas, então sempre foi algo meio distante. Nunca pensei que poderia sim ter mulheres ali, não só como corredoras, mas como jornalistas, engenheiras e etc. Hoje, isso é real. Temos diversas referências ali dentro, e eu espero que venha a aumentar cada vez mais a presença feminina nesse esporte. Claro, é difícil quando não existe apoio, e pior ainda quando até os pilotos repercutem uma visão negativa de mulheres no paddock. É um trabalho que precisa de todos os lados agindo, não dá pra ser a gente brigando para estar ali”, pontua Rafaela Nogueira, 19 anos, fã de automobilismo.

Assim como mulheres que são piloto, a presença de mulheres nos diferentes segmentos da Fórmula 1, ou seja, a representatividade feminina no automobilismo é fundamental. Ao assistir uma corrida, meninas precisam se sentir representadas e desde pequenas sentirem-se incluídas nesse ambiente e não aceitarem que carros e corridas são exclusividade de meninos.

Nesse cenário, de crescimento da presença feminina, destacam-se personagens que para além de se impor em um ambiente predominantemente masculino e quebrarem barreiras para estarem ali, abrem caminho para outras mulheres também seguirem trajetórias semelhantes e, portanto, com esses pequenos avanços, aumentar a igualdade no automobilismo.

“Para mudar esse ambiente interno, ainda tem toda a questão de desconstrução social aqui fora. Eu vou há cinco anos nas corridas em Interlagos, eu tive o prazer de ver que em 2021/2022 (eu fiquei no setor A), o setor A tava 50/50. 50% era mulher 50% era homem e antes era uma coisa assim, que, cara, você raríssimo via mulher. Em 2017, foi o primeiro ano que eu entrei. Eu imagino que antes, devia ser muito mais complicado”, pontua Rafaela Oliveira, graduada em jornalismo e responsável pelo site garota da F1.

Mariana Becker: A Jornalista da Fórmula 1
Foto de Mariana Becker por @oficialmarianabecker/Instagram

Mariana Gertum Becker nasceu em 30 de abril de 1971 na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul e é graduada pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC). A jornalista brasileira é uma mulher que se mistura aos tantos homens que vemos nas corridas de Fórmula 1, sendo considerada uma pioneira quando se trata de automobilismo. Entre 2007 e 2020, Mariana foi responsável pela cobertura da F1, enquanto trabalhava na rede Globo e, atualmente, com a venda dos direitos da categoria para a TV Band, a jornalista presta os seus serviços para a emissora.

Mariana Becker é símbolo da representatividade feminina no automobilismo. Em entrevista à Gama Revista, em uma publicação pelo Grupo Nexo, a jornalista fala sobre sua missão na profissão, vista como a de abrir caminhos. “Quero que seja mais fácil para novas mulheres do que foi para mim”, afirmou.

Mariana discorre na entrevista sobre como enfrenta o machismo presente no automobilismo e em sua profissão, afirmando: “A mulher até está sendo aceita no mercado de trabalho, mas as com poder de decisão sempre sofrem mais questionamentos e julgamentos. As pessoas chamam de louca, de histérica. Por que não falamos isso do cara que é neurótico e não cala a boca? Hoje eu não tenho tantos problemas, afinal de contas estou lá há muito tempo. Mas tive de insistir muito e esse é o meu conselho para as mulheres que têm esse sonho: sempre se lembre dos motivos pelos quais você está fazendo algo. Se você ama algo, não vai ser um cara que vai te parar. Insiste, insiste e insiste. Quanto mais mulheres com esse pensamento, mais a gente pode se ajudar.”

Hannah Schmitz: Chefe de Estratégia da Red Bull

Hannah Schmitz, graduada em engenharia mecânica na Universidade de Cambridge, é engenheira e chefe de estratégias da Red Bull. Hannah chegou no time do energético em 2009, como estagiaria e ao longo dos anos foi conquistando o seu espaço, até assumir o protagonismo em uma das principais equipes da Fórmula 1. A engenheira é, portanto, peça fundamental para o sucesso do time e a tomada de decisão de Schmitz é o que, muitas vezes, leva a equipe para o lugar mais alto do pódio. “Se conseguimos vencer essa corrida, foi principalmente por causa da Hannah”, afirmou Remult Marko, consultor do time, em entrevista em coletiva de imprensa após Grande Prêmio de Mônaco de 2022.

Foto de Hannah Schmitz por red bull content pool
Angela Cullen: Fisioterapeuta de Lewis Hamilton

Angela Cullen é outra mulher conhecida no Paddock. A fisioterapeuta neozelandesa, graduada pela Universidade de Tecnologia de Auckland, é parte essencial da equipe Mercedes AMG Petronas e, mais especificamente, do sucesso do heptacampeão mundial de Fórmula 1.

“Era normalmente o cara com quem eu estava trabalhando, que ia para a estrada comigo e treinava comigo. Aí comecei a perceber que estava tendo problemas. De vez em quando aparecia uma lesão ou eu tinha um problema no pescoço ou algo assim e eu nunca tinha ninguém para resolver aquilo […] Até a Angela chegar, então eu pensei: Porque você não vai para a estrada comigo, pois não treino nos fins de semana de corrida. Eu preciso de um fisioterapeuta que conheça o meu corpo e saiba do que ele precisa para estar o melhor preparado possível para um fim de semana de corrida”, declarou Hamilton em entrevista durante corrida no Circuito das Américas em 2021.

Foto de Angela Cullen por @cullen_angela/Instagram

Mariana Becker, Hannah Schmitz e Angela Cullen são exemplos que o automobilismo é um local para mulheres em suas diversas funções. “Eu acho que existe espaço para as mulheres em qualquer lugar. A gente tem que cultivar esse pensamento, primeiro de tudo como sociedade. Na verdade, eu acho que esse é o momento de maior ápice de ‘existe sim a possibilidade de termos mulheres no automobilismo’ e, em qualquer área, seja em engenharia, na parte de estratégia ou pilotando. Eu acredito fielmente que existe espaço, o que falta mesmo é oportunidade”, afirma Rafaela Oliveira.

Os desafios de uma MULHER no automobilismo

W SERIES

A W Series, fundada em 2019 pela advogada Catherine Bond-Muir, é uma categoria 100% feminina. A ideia inicial era contribuir para o acesso de mulheres às principais categorias do automobilismo, ao oferecer oportunidades igualitárias e acabar com as barreiras que as impendiam de competir no auto nível do automobilismo mundial.

A categoria é alvo de críticas e na última temporada (2022) enfrentou dificuldades para a conclusão do campeonato, o qual teve que ser encerrado precocemente devido a problemas financeiros. A realização das três últimas corridas (Estados Unidos e rodada dupla do México) foi inviabilizada após um investidor não colaborar com a quantia acordada, de acordo com dados do portal oficial da W Series. Percebe-se, portanto, uma falta de investimento real nas mulheres, para que essas tenham a chance de chegar na Fórmula 1, por exemplo, e competir de igual a igual com os homens.

“É muito importante, realmente, a criação dessas categorias centradas em mulheres, só que também é preciso ter um investimento real, ter uma visão de futuro disso. Vai ficar preso nisso só? Como eles vão abrir essa porta? Por exemplo, a W Series ficou presa a si mesma. Nós temos a Jamie Chadwick, que ganhou três anos seguidos da W Series e não aconteceu nada com ela. Ela tá como reserva esse ano [2023] dentro da Fórmula 1, mas efetivamente não aconteceu nada. Quer dizer, agora ela já migrou para outras categorias. Então acabou se perdendo, porque não se fez uma junção. Por que a Fórmula 1 não investiu na W Series? Por que não deu dinheiro? Por que não deu visibilidade para a categoria? [Categorias como a W Series] São muito importantes, mas tem que saber o que você vai fazer com ela: como você vai investir nela e como você vai fazer com que isso abra porta para as mulheres pilotarem na Fórmula 1?”, analisa Rafaela Oliveira.

Jamie Chadwick: Tri Campeã da W Series
Foto de Jamie Chadwick por @F1Mania/Twitter

Jamie Chadwick nasceu no dia 20 de maio de 1998, em Bath (Inglaterra). A britânica tem passagem em diferentes categorias: Campeonato Britânico de GT, Campeonato Britânico de GT4, F3 Britânica e Fórmula E. Em 2019 estreou na W Series e foi campeã no ano de estreia. Ganhou também o campeonato nos anos de 2021 e 2022, se consagrando tri-campeã da W Series.  

Jamie Chadwick é mais um exemplo que o talento, especialmente quando estamos falando de mulheres, não é suficiente. Para uma mulher chegar na principal categoria do automobilismo (Fórmula 1), ela precisa enfrentar inúmeros desafios: aqueles que começam dentro de casa; o julgamento e o machismo que dita regras sobre o espaço da mulher na sociedade; a falta de pessoas que acreditam e investem financeiramente, o entendimento de que vai enfrentar um cenário hostil composto por homens e até mesmo o questionamento sobre as condições biológicas/físicas sobre a capacidade de mulheres competirem em corridas automobilísticas.

A expectativa para ter uma mulher competindo na Fórmula 1, portanto, é uma realidade ainda distante. “Eu acredito que as mulheres podem competir de igual com os homens, mas sempre seremos poucas. A força física necessária não é uma característica feminina. Esses pescoços de touro por exemplo não são coisas bonitas de se ver. Mas fico surpresa de ainda não termos mais. Existe a questão do dinheiro. Muitos patrocinadores não acreditam que uma mulher pode competir de igual para igual. É uma pena, porque haveria muito interesse se tivermos uma mulher na Fórmula 1”, Maria Teresa de Fillipis, em entrevista ao The Guardian em 2006, abordou a questão da presença feminina, ressaltando a dificuldade de vermos uma mulher na categoria em um futuro próximo.

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