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O filme indicado ao Oscar 2025 na categoria de Melhor Curta-Metragem em Live-Action, Anuja vai muito além de um simples relato sobre as dificuldades enfrentadas por crianças em Dehli. Dirigido por Adam J. Graves, a escolha por contar a história em hindi, diferentemente de animações ou representações ficcionais, e ainda trabalhar com imagens reais, acrescenta uma camada de autenticidade à trama. O Curta-metragem estadunidense é também, a única produção no Oscar 2025 a representar a realidade da Índia.
Ao misturar a fábula, onde o extraordinário se insere no cotidiano, com o realismo duro e implacável que é a vida das crianças nas ruas de Dehli, o filme propõe uma leitura multifacetada do problema. De um lado, revela as duras condições de vida e a exploração imposta pelas desigualdades sociais. Por outro, oferece uma dimensão simbólica onde a esperança e a possibilidade de transformação se fazem presentes. Essa dualidade convida o espectador a refletir sobre a capacidade da arte de transformar a realidade, despertando para a necessidade de mudanças nesse sistema que permite tantas injustiças.
Contém Spoiler! Toda a narrativa começa com uma fábula sobre um mangusto. Essa abordagem talvez não seja facilmente entendida pelo espectador, mas serve como uma metáfora central para a jornada da protagonista. Na história, o mangusto enfrenta desafios e perigos, simbolizando coragem, resiliência e a capacidade de superar adversidades. O animal na tentativa de salvar uma menina que é também filha de seus donos, acaba sendo injustiçado e é sacrificado por eles. Essa fábula estabelece o tom para os dilemas que Anuja enfrenta ao longo do filme, mostrando como as decisões, ao mesmo tempo em que podem abrir um mundo de possibilidades, implicam em consequências irreversíveis.
No centro da narrativa está a jovem Anuja, interpretada por Sajda Pathan, uma órfã de nove anos, que trabalha clandestinamente em uma fábrica de roupas em Dehli, Índia, ao lado de sua irmã mais velha, Palak. Anuja é retratada como uma menina esperta e talentosa, cuja inteligência a diferencia no ambiente opressor da fábrica. Quando surge a oportunidade de Anuja estudar em um colégio interno de elite, ela enfrenta um dilema que pode mudar o destino de ambas. A relação com a irmã Palak, vivida por Ananya Shanbhag, é o núcleo emocional do filme, mostrando o profundo vínculo entre as duas e os sacrifícios que estão dispostas a fazer uma pela outra. Assim, a presença das jovens no filme é marcada por uma força silenciosa, onde cada olhar e gesto carrega o peso de uma vida precoce.

Anuja e sua irmã Palak. Imagem: Divulgação/Netflix
A atuação feita por Sajda Pathan é amplamente reconhecida por sua autenticidade e profundidade, refletindo a própria experiência de vida da atriz na realidade. Antes de ingressar na atuação, Sajda viveu nas ruas de Dehli, onde, junto com sua irmã, recorria à mendicância para sobreviver. Sua vida mudou quando foi resgatada pelo Salaam Baalak Trust, uma organização não governamental dedicada a apoiar crianças em situação de rua e trabalho infantil. Atualmente, Sajda reside no centro de acolhimento da organização, o SBT Day Care Center.
Essa escolha por filmar em locações reais de Dehli, sem montagem de cenário, confere uma autenticidade que intensifica o relato das condições de vida das crianças. A abordagem documental, no entanto, é temperada pela linguagem poética, em que cada frame transcende a simples exposição do sofrimento. Assim, o curta se transforma em uma obra de arte que, ao mesmo tempo que denuncia, encanta e provoca reflexões profundas.
Porém, Anuja não apenas narra uma história comovente, mas é também uma crítica social à exploração do trabalho infantil e às limitações impostas à educação de meninas. Ao apresentar a jornada de Anuja, o filme destaca a importância da educação como ferramenta de transformação, além de evidenciar as barreiras sistêmicas que perpetuam ciclos de pobreza e exploração.
ONGs estimam que 10 milhões de crianças entre 5 e 14 anos continuam sendo forçadas a trabalhar na Índia, principalmente no setor agrícola. Além disso, estudos revelam que mulheres e crianças compõem quase 95% da força de trabalho em certas áreas da indústria têxtil, com crianças iniciando suas jornadas laborais em idades tão precoces quanto 10 anos. Essas crianças frequentemente enfrentam jornadas extenuantes de até 14 horas diárias, recebendo remunerações ínfimas, muito abaixo do salário mínimo estabelecido.
A narrativa de Anuja também aborda a difícil escolha entre trabalho e educação. Na realidade, a pobreza e a falta de acesso a escolas de qualidade levam muitas famílias a depender da renda gerada pelo trabalho infantil, perpetuando um ciclo de pobreza e falta de oportunidades. Organizações como a Bachpan Bachao Andolan têm trabalhado arduamente para resgatar e reabilitar crianças em situações de exploração, promovendo seu direito à educação e a uma infância digna.
Assim, é merecido destacar que a produção do filme contou com a colaboração de organizações comunitárias, como o Salaam Baalak Trust, que oferece suporte a crianças de rua e trabalhadoras em Dehli. A colaboração com a ONG durante a produção permitiu que o filme capturasse de forma autêntica as experiências de crianças em contextos vulneráveis, refletindo a realidade que Sajda conheceu de perto.

Palak e Anuja na Fábrica. Imagem: Divulgação/Netflix
O curta pode, ainda, ser comparado a outras produções cinematográficas que abordam temas sociais e humanitários, como no filme Lion: Uma Jornada para Casa (2016). Embora seja uma produção mais comercial, Lion aborda a história real de um menino indiano que se perde da família e enfrenta anos de dificuldades até ser adotado por uma família australiana. Assim como Anuja, o filme lida com a vulnerabilidade infantil na Índia e destaca a importância da educação e das oportunidades para quebrar ciclos de pobreza. Nos dois filmes também é explorado o vínculo emocional entre irmãos como força motriz da narrativa.
Ambos denunciam a vulnerabilidade infantil na Índia, expondo como a falta de estrutura social condena milhões de crianças a uma realidade de abandono e exploração. No entanto, enquanto Lion adota uma perspectiva mais centrada na jornada de reencontro e redenção, Anuja se sobressai por sua abordagem mais crua e imediata, sem a mediação de um olhar ocidental ou uma narrativa de resgate. O curta não oferece um desfecho esperançoso ou uma solução individual, mas sim uma reflexão profunda sobre o dilema estrutural do trabalho infantil.
Desde sua estreia no HollyShorts Film Festival em agosto de 2024, onde ganhou o prêmio de Melhor Curta-Metragem Live Action, Anuja tem sido reconhecido por sua narrativa poderosa e relevante. O crítico Mark Jacob, do We Love Short Films, atribuiu ao filme a nota máxima de 5 estrelas, destacando que o diretor Adam J. Graves “captura habilmente a essência do mundo de Anuja, usando visuais marcantes para transmitir sua resiliência juvenil”. Além disso, a crítica especializada elogia a capacidade do filme de abordar temas complexos de maneira sensível, porém impactante, destacando-se como uma obra cinematográfica que combina arte e ativismo social de forma exemplar.
Mas, apesar de tudo, o final é ambíguo, e pode provocar dúvidas no espectador, ficando a cargo da interpretação e imaginação. Antes de encerrar, o curta espelha a incerteza e a complexidade das decisões, enfatizando que, tal como o mangusto, a escolha de Anuja não será somente para si e suas decisões impactarão também o destino de sua irmã. Dessa forma, sem oferecer um desfecho para a trama, o final indica que a jornada de uma das duas será anulada em prol da outra. E, assim, Anuja, mesmo que sendo uma criança, precisará fazer sua decisão, e posteriormente será obrigada a lidar com o peso dessa escolha ainda que o caminho não seja certo.