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GABRIEL RODRIGUES
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A escolha de um título tão conhecido, publicado há mais de quarenta anos, pode soar estranha ao leitor, mas relembrar é viver. Além disso, Clarice Lispector ganha em 2021 e 2022 homenagens adiadas por seu aniversário de 100 anos. A escritora nasceu em 1920, mas em 2020 estávamos no início da pandemia, de forma que a Rocco, editora que publica sua obra, postergou a comemoração.

No site da empresa estão listadas todas as edições comemorativas: os nove romances ganharam novas capas – retiradas das pinturas de cunho abstrato e impressionista da própria Clarice, também foi editado um box que além dessas obras contém seis contos e três crônicas, totalizando dezoito livros. Vale ressaltar que, embora trate-se de uma edição especial com valor de coleção, os mais de R$450,00 necessários para adquirir o box deixam de fora alguns contos e muitas crônicas e não compram a bibliografia completa da escritora. Além disso, como pode ser visto nas reviews do livro na Amazon, as novas edições chegam com ar de finalmente aos leitores que consideram as da coleção anterior (em papel branco azulado, duro, com aquarelas de Flor Opazo e a assinatura de Clarice na capa) um desserviço às obras. 

A nova edição de “A hora da estrela” traz na capa um recorte de uma pintura sem título feita por Clarice em 1975, dois anos antes da publicação do romance, que foi o penúltimo a ser escrito por ela e o último a ser publicado durante a sua vida (“Um Sopro de Vida” foi editado postumamente e saiu em 1978). A obra saiu dois anos depois do Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, onde Clarice apresentou uma versão em inglês de seu conto “O ovo e a galinha.” Referido por ela mesma na sua última entrevista dada ao jornalista Junio Lerner Panorama em 1977 como “um mistério” até para ela mesma. A cobertura sensacionalista pela imprensa da época se encarregou de pintar a escritora como “A bruxa da Literatura Brasileira.”

O momento da publicação de “A hora da Estrela” na vida de Clarice foi marcado por eventos infelizes: desde a descoberta da esquizofrenia de seu filho e a separação entre ela e o marido em 1959, passando pelo incêndio que quase a matou em 1966 até a descoberta do câncer de ovário em 1977, pouco depois da publicação do livro. Talvez o desnudamento que se observa na obra sirva como resposta a este ar de obscuridade e ocultismo construído pela imprensa, que a este ponto relacionava quase medievalmente o incêndio, a esquizofrenia do filho e o câncer à ideia de bruxaria e ao estilo literário único de Clarice, marcado pelas metáforas incomuns, pela não linearidade do tempo psicológico, referido por Alfredo Bosi como metafísico e sua pela sua não conformação aos gêneros literários estabelecidos. 

Mas desnudamento de que, exatamente? Em “Água Viva” de 1973, Clarice aperfeiçoou e apronfudou seu estilo, de forma que o romance, se é que pode ser assim chamado, rompe totalmente com a narrativa linear. Não há história em “Água Viva”: o livro é um registro do fluxo de pensamentos que vai desde imaginar a vida cega e anônima dos mexilhões a atribuir personalidades e gêneros às espécies de flores por cinco páginas.

“A Hora da Estrela” não poderia ser mais diferente. O primeiro personagem apresentado é o próprio autor, Rodrigo, que passa as primeiras treze páginas falando sobre escrever e sobre seus receios e emoções em contar a história. É um início que gera muita ansiedade e promete pouco, Rodrigo diz que quer narrar com palavras mínimas e sem enfeites a vida pequena de uma nordestina. Clarice parece estar disposta em convencer o leitor a ter certa irritação em relação ao seu autor-personagem que frequentemente interrompe a narrativa para se comparar à heroína ou dar suas impressões. Além de comentarista, Rodrigo parece também servir ao propósito de dissecar impiedosamente com olhos e preconceitos masculinos.

“A Hora da Estrela” conta a vida de Macabéa, uma datilógrafa que emigrou do Nordeste para o Rio de Janeiro e cuja existência é anônima e ordinária, algumas comparações entre ela e coisas como capim seco e cães que não sabem que são cães ilustram a intenção da autora. Macabéa, no entanto, apesar de sofrer muito, se recusa a ser infeliz – como se a infelicidade fosse de uma elaboração crítica da qual ela não é capaz. Rodrigo sem cerimônia nos diz que ela tem um cheiro “murrinhento” e que seus ovários são como cogumelos murchos. O que coloca a história em movimento é o relacionamento dela com Olímpio, um homem grosseiro que constantemente a humilha e ofende, mas que Macabéa aceita por seu seu primeiro e único namorado, que não chega sequer a lhe tocar sexualmente antes de perder o interesse por ela. Olímpio troca a heroína por uma colega da própria Macabéa, Glória, a quem o escritor Rodrigo descreve de forma igualmente pouco generosa: gorda, feia e coberta de pêlos descoloridos de água oxigenada. 

Glória indica a Macabéa uma cartomante. O ápice e conclusão da história se dão na visita dela à tal vidente, que é uma personagem interessantíssima e representa de certa forma o seu contraponto: A Cartomante fala por longos parágrafos e obtém de Macabéa respostas monossilábicas; A cartomante já foi prostituta e Macabéa é virgem; A cartomante é coberta de maquiagem grotesca e vive cercada de flores de plástico e Macabéa é bege e simples. Em sentido mais profundo, A cartomante é religiosa e atribui religiosidade a tudo, até mesmo à prostituição, e Macabéa não entra em uma igreja desde que a tia morreu. 

A profecia que a tal cartomante vê através das cartas também se opõe a tudo que Macabéa já viveu: ela conhecerá um estrangeiro rico e bonito com o qual se casará e será muito feliz. A heroína sai correndo da casa da cartomante, ávida para abraçar sua nova vida e, num sem fim de ironia e humor cruel, é atropelada por um carro de luxo. Rodrigo ainda vacila em matar ou não Macabéa, mas a este ponto, com dez ou menos páginas restantes, é óbvio que ela morre. A obra termina como começou, com devaneios do autor-personagem.

“A Hora da Estrela” se destaca em meio à obra de Clarice Lispector não apenas por ser consideravelmente mais inteligível aos que não estão habituados ao estilo da autora, mas também por representar de fato uma forma de síntese, a “vida interior”, como diz Lispector, de Macabéa é simples e simples também são seus pensamentos e seus desejos, embora a intromissão irritante de Rodrigo impeça que a obra seja perfeita nessa sua simplicidade.

Como em muitos outros livros dos séculos anteriores, vale lembrar que o leitor deve entender a obra a partir de seu tempo, o livro repercute estereótipos xenofóbicos acerca dos nordestinos. Em suma, “A Hora da Estrela” é fruto de um momento difícil da vida da autora, representa de certa forma uma ruptura com os trabalhos anteriores, e é único na bibliografia de Lispector, o que nem de longe significa que seja seu melhor romance.

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