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Eu, uma mulher negra, estou buscando o bem-viver. Estou buscando qualidade de vida, lutando pela visibilidade nos espaços de poder.

– Luciene de Oliveira Dias

(Foto: Luciene Dias)

O 20 de novembro é reconhecido desde 2011, a partir da Lei nº 12.519, como o Dia Nacional da Consciência Negra. Historicamente tido como um dia de luta pela visibilidade e resistência da população negra, “não é uma data de comemoração”, afirma a professora e doutora em Antropologia, Luciene de Oliveira Dias.

Jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), doutora em Antropologia Social, pesquisadora da linha de Comunicação, Cultura, Diferença e Mídia, Luciene Dias pesquisa há mais de 20 anos as interfaces culturais, principalmente as étnico-raciais e de gênero e, durante o mês de novembro, concordou em dialogar sobre diferentes questões quanto ao movimento negro.

Tendo como referência teórica um de seus artigos científicos, “Direitos ‘quase humanos’: vivência para ensinar e aprender a comunicação dialógica” – estudo pautado na noção de como alcançar a cidadania plena aos indivíduos marginalizados –, professora Luciene Dias aborda as diferentes faces da luta negra, contando com alusões históricas, recortes socioculturais e, claro, a própria vivência como mulher e pesquisadora negra.

O 20 de Novembro

LN: O que representa o Dia da Consciência Negra e como tornou-se o Novembro Negro?

Luciene Dias: O Dia da Consciência Negra é uma data totalmente forjada e pautada na luta da população negra. Por isso, não é concessão. Pelo contrário, esse dia é resultado de muito estudo, de muita análise de conjuntura, de muito debate político feito por, para e com pessoas negras. É um dia, decididamente, que não é para se comemorar. É um dia de luta, tendo como referência Zumbi e Dandara dos Palmares.

O 20 de novembro foi escolhido a partir de uma das primeiras lutas que a população negra tem memória, que é a formação, a destruição e o fim do Quilombo dos Palmares. Atualmente, quando falamos em Dia da Consciência Negra, ampliamos essa percepção para “Mês da Consciência Negra”, o Novembro Negro. E a partir disso, durante todo o mês tem uma série de atividades, todas ainda muito vinculadas à luta e não à comemoração. O principal objetivo dessa data é lembrar às pessoas, principalmente as não negras, que o racismo existe e que precisamos estar atentos para impedir que ele continue operando e fazendo vítimas.

Recortes

Como a pluralidade do Movimento Negro se reafirma no 20 de novembro?

Luciene Dias: A gente como jornalista vê, por exemplo, que as manchetes de jornais aparecem sempre nessa data falando a respeito de “um negro”, ou então “dia do negro”, ou “o racismo contra o negro”. Só que se pensarmos na população negra, também existem recortes de gênero, sexualidade, religião. Não dá para falar em movimento negro no singular. Por exemplo, esse ano, o 20 de novembro em Goiânia foi muito bonito. Teve uma marcha que reuniu vários recortes, como o Movimento de Capoeira, o das Mulheres Negras, o da População LGBT Negra, o dos Terreiros e outros que estiveram presentes. Percebe a pluralidade? Trata-se de um momento muito importante, não somente reforçando a luta, mas exibindo a quantidade de recortes envolvidos. Não existe “um negro”, existe a população negra e essa data serve para mostrarmos isso.

Ao longo dos anos, vemos a figura de Dandara dos Palmares ganhando destaque na data ao lado de Zumbi dos Palmares. O que essa mulher representa no recorte de gênero da pauta?

Luciene Dias: A forma como as mulheres negras vivem é muito diferente da forma como os homens negros vivem. Resgatar, trazer e destacar Dandara dos Palmares é pensar nas especificidades das mulheres negras. É fazer um recorte feminista. A Dandara como referência é manter a necessidade de pensar a partir desse lugar da mulher, afinal, mulheres negras também têm demandas afetivas, demandas trabalhistas, demandas de cuidado.

Como é que mulheres negras, por exemplo, cuidam do corpo, cuidam do cabelo? É diferente da forma como os homens negros cuidam. Como é que adolescentes negras iniciam a sua vida afetiva e sexual? Até recentemente, na década de 50, mulheres negras não recebiam anestesia para dar à luz. As pessoas achavam que nós não sentíamos dor no parto. Isso é um absurdo. A partir dessas situações de violência, sejam elas macro ou micro, que surge a necessidade de pensar em gênero dentro da luta negra.

Então, a entrada da Dandara para pensar o Mês da Consciência Negra é muito importante para pensarmos o nosso lugar de mulheres. Mulheres negras fazendo a vida acontecer a partir das nossas próprias existências.

Local de fala

No Mês da Consciência Negra, vemos constante e anualmente pessoas brancas ocupando os locais de fala, sendo homenageadas e cotadas para discutir essas questões, como aconteceu recentemente, em que a ex-candidata à Presidência, Simone Tebet, ganhou o Troféu Raça Negra 2022 – prêmio de homenagem às 20 mulheres fundamentais na luta pela inclusão do negro. Qual a problemática dessa situação? Como trazer as pessoas, principalmente mulheres negras, ao local de fala que as pertence?

Luciene Dias: O que eu tenho defendido é a urgência na pauta da representatividade. Tem um jargão nos movimentos negros organizados que gosto muito: “Nada sobre nós, sem nós”. Essa é uma forma de sintetizar a representatividade, porque isso [representatividade] realmente muda o cenário que a gente está vendo, você passa a enxergar as pessoas, elas saem do lugar de invisibilidade.

Eu vi esse caso da Simone Tebet e fiquei muito triste, mas achei bom para pensar. No entanto, eu entendo que ela ganhou o prêmio pelo lugar que ocupa na conjuntura da política nacional. Ela foi uma candidata à Presidência da República, isso não é pouca coisa. Porém, o que a gente precisa se perguntar é: por que não houveram mulheres negras candidatas à Presidência da República juntamente aos 11 candidatos? Acredito que lutar pela representatividade é a resposta.

Quando a gente tiver uma mulher negra candidata, ela poderá concorrer ao mesmo prêmio que a Simone Tebet ganhou. Nesse caso, em si, acredito que o que faltou foi a representatividade. Mulheres negras terão local de fala quando estiverem ocupando postos de comando, seja na política, no jornalismo, nas universidades, nos hospitais, em todos os espaços.

A “consciência humana”

Anualmente, quanto mais se aproxima o dia 20 de novembro, os posts nas mídias sociais começam a ganhar vigor e sempre retomam aquela fala do ator Morgan Freeman: “O dia em que pararmos de nos preocupar com a consciência negra, amarela ou branca e nos preocuparmos com a consciência humana, o racismo desaparece”. O que essa fala representa? Por que as pessoas brancas apropriam-se desse discurso, o qual o próprio Morgan Freeman já repensou?

Luciene Dias: Essa fala para as pessoas racistas representa uma comodidade diante do privilégio branco. O próprio ator reviu esse discurso, viu que era problemático. Eu gosto de trazer Malcom X para essa discussão. Na biografia dele, um dos grandes dilemas, uma das grandes dores, era que ele, nem por um único dia de vida, conseguiu existir sem que alguém o lembrasse que ele era um homem negro. Não somos todos humanos. A tal da “consciência humana” não existe. Porque se fôssemos todos humanos, se a gente estivesse no mesmo parâmetro de lugar na sociedade, já teríamos, por exemplo, uma pessoa negra Presidente da República.

O nível de humanidade oscila entre etnias. A busca pela humanidade é diferente entre pessoas negras e pessoas brancas, porque para a pessoa branca, o “Humano” é dado. É o que a pessoa é, ela nasce humana. Para a pessoa negra, não. Para a gente, o “Humano” é uma busca. Todos os dias a pessoa negra é lembrada que é negra. Eu tenho que brigar todos os dias para ter a minha humanidade respeitada. Quando um estudante calouro olha para mim e fala “você não tem cara de professora”, por que ele faz isso comigo e não com alguma outra professora branca? Porque ele retira da minha estética a condição plena de humanidade.

A humanidade não é dada, tanto que nos associam com o macaco, porque ele é bicho. Então, enquanto a pessoa negra tiver que buscar a sua condição de humanidade, não existe isso de “consciência humana”, porque se existisse, o racismo não existiria.

O “Bem-Viver” e a “Necropolítica”

No seu artigo “Direitos “quase humanos”: vivência para ensinar e aprender a comunicação dialógica”, há um antagonismo entre as concepções de “Necropolítica” e o “Bem-viver” na noção de como alcançar a cidadania plena aos indivíduos marginalizados. Nesse sentido, como as pessoas racializadas lutam para serem vistas no Brasil? Como ocorre, principalmente pela comunidade negra, o movimento sócio-político pela manutenção dos direitos do “Bem-viver”?

Luciene Dias: O movimento pelo bem-viver é o existir enquanto pessoa que vive bem, existir com plenitude em todos os espaços que considero importantes na minha vida. Por exemplo, eu, uma mulher negra, estou buscando o bem-viver. Estou buscando qualidade de vida, lutando pela visibilidade nos espaços de poder. Eu sou mãe e um espaço de poder para mim é o exercício saudável da maternidade. Então, eu preciso alcançar esse espaço, preciso ser uma mãe saudável, uma mãe negra saudável. Quando alcanço esse lugar, também alcanço o bem-viver. Mas quando não alcanço, há a construção das invisibilidades sociais.

Se não existem pessoas negras na Presidência da República, no Supremo Tribunal Federal, nas Reitorias das Universidades, nos sindicatos, em todo lugar, não há existência. Isso é uma invisibilidade. Portanto, o bem-viver seria a capacidade humana de acessar todos os direitos, de reconhecer todos os deveres e de não ter os seus direitos usurpados.

Essa usurpação de direitos faz parte de uma política que busca trazer as pessoas negras a uma posição de indivíduos marginalizados?

Luciene Dias: Sim, exatamente. A necropolítica é essa política. Ela é o contrário disso tudo que falei, é a política da morte. É o que diz que se você é um menino negro, você não pode pedalar livremente numa bicicleta cara, porque a polícia vai te abordar. Se você é uma mulher negra e lésbica, você não pode ser mãe porque a sociedade vai te criticar. Se você é uma pessoa negra, você não pode ser presidente do Brasil porque a sociedade não vai te eleger.

Então, ao contrário do bem-viver, a necropolítica é a política que diz quais são as pessoas que devem morrer. Matamos uma pessoa negra, quando elaboramos uma matéria e nenhuma fonte é uma pessoa negra, a não ser que seja uma pauta específica sobre racismo. Matamos a pessoa negra desde o momento em que elas não ocupam locais de autoridade, até o momento em que, literalmente, são chacinadas.

A sociedade mata pessoas negras não com um, dois, três ou quatro tiros. Mata essas pessoas com 80 tiros. Não mata uma vereadora com um tiro. Faz uma chacina contra ela, como o caso Marielle e Anderson. É uma morte “muito bem matada”. Isso é a necropolítica, e é por isso, que ela é o contrário do bem-viver.

Pessoalidade

A senhora é uma referência em estudos sobre antropologia, principalmente quanto às diferenças e minorias sociais. Como que é dedicar a sua vida e carreira a isso?

Luciene Dias: É existir pelo que eu sou e não pelo que eu não sou. É o meu direito humano, o que quero por todos os dias da minha vida. Eu não quero ser aquela professora que tem o corpo formatado. Aquela que tem que usar o cabelo preso, o óculos de grau, a saia no meio do joelho. Não quero. Meu corpo é outro. O meu corpo é um corpo negro com o cabelo crespo. O jeito como eu me visto mostra a identidade de sexualidade, por exemplo.

Por isso, existir a partir desse lugar me torna plena. Viver assim é maravilhoso, porque sou eu buscando todos os dias o direito de existir pelo que sou. Uma pessoa que luta, que não tem vergonha do que é, que tem orgulho das conquistas, mas reconhece todos os dias suas perdas e suas buscas. Por isso, digo, eu estou no lugar certo, na vida certa e na hora certa.

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