Ballrooms: Contexto Histórico e Cenário Goiano

Muito além das danças, competições e glamour, a cena Ballroom deve ser um espaço de resistência que valoriza corpos trans e travestis negros
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Se você assistiu a série Pose, o reality show Legendary, ou o clássico RuPaul’s Drag Race, certamente você conhece ou ao menos já ouviu falar nos Ballrooms. Se ainda não conhece, não se preocupe que já vamos aprofundar nessa história.

Os Ballrooms adquiriram notoriedade por volta da década de 80 e 90, mas sua história começa bem antes disso. “Acredita-se que muito da Ballroom bebe de um movimento cultural que ocorreu na década de 1920, chamado de Renascença do Harlem”, conta Ícaro Silva, pesquisador de Performances Culturais pela UFG e participante da cena Ballroom goiana.

O Harlem, em Nova York, hoje é conhecido por ser um bairro negro; mas, inicialmente, ele era judeu. Com a emancipação – a abolição estadunidense –, houve o êxodo rural da população negra, que passou a procurar locais com aluguéis mais baratos em regiões com maior desenvolvimento, caso do Harlem naquele período. Com o tempo, os judeus saíram do bairro, ficando ali majoritariamente pessoas negras.

Voltando para os anos 1920, a Renascença do Harlem foi uma grande emergência da cultura negra. Ícaro conta que, durante esse período, passaram a acontecer bailes voltados para a população LGBTQIA+. “Os homens gays iam trajados de homens, as mulheres lésbicas de mulheres e, dentro dessas festas, eles trocavam. Eram bailes normais onde mulheres se vestiam de homens e homens de mulheres”. Posteriormente a isso, surgiram os já conhecidos concursos para drag queen e travestis – mas esses concursos eram altamente racistas.

Nessa época, a perseguição racial era muito forte e, por conta disso, drag queens negras precisavam pintar seus rostos de branco para conseguirem ao menos entrar nesses concursos, conta Pietra Pedrosa. Também conhecida como Pietra Laroyê, Pietra é negra, travesti, soropositiva, acadêmica de Dança pela UFG e uma das mothers da House of Laroyê. “Por mais que você pinte seu rosto de branco, seu nariz ainda é negro, sua boca ainda é negra, o seu gesticular ainda é negro. A raiz do seu cabelo ainda aparece e ela também é negra. Os vários marcadores do corpo preto não somem, por mais que você passe muito pó de arroz no rosto e muito blush rosa, e isso fazia com que elas acabassem perdendo,” acrescenta Pietra.

Uma das participantes dos concursos foi a drag queen negra Crystal LaBeija, personagem da história que dá o pontapé inicial nos Ballrooms. Certa vez, em 1967, descobriu-se que uma jurada de um dos concursos que LaBeija participou havia sido comprada para votar em uma drag queen branca. Isso revoltou LaBeija, que decidiu não participar mais desse sistema discriminatório e criar um novo estilo de baile, relata Pietra. Com isso, em 1972, Crystal se juntou a Lottie LaBeija para criar um baile voltado apenas para drag queens negras.

“Esse novo estilo de baile, de competição, era uma forma daquilo acontecer sem partir de uma estética racista, classista e brancocentrada”, conta Pietra. Então, Crystal LaBeija convidou algumas pessoas para que elas entrassem na competição e desfilassem juntas, assim criando a primeira casa – a primeira House – da história da cena Ballroom: a House of LaBeija. O surgimento desse novo tipo de baile fez com que a comunidade negra norte-americana não aceitasse mais ficar apenas como plateia e quisesse também participar. Isso, somado ao forte viés racista presente nos Estados Unidos que não premiava pessoas negras, fez com que o Ballroom criado por LaBeija tomasse força, e outras casas passaram a surgir. 

“As casas eram formadas por pessoas que foram expulsas de casa por serem LGBTQIA+, que queriam fugir da cis-norma e da branquitude”, diz Pietra. “Essas pessoas, que eram marginalizadas e moravam nas ruas, iam para os bailes para poderem ter um momento de glamour, de beleza, de conseguirem prêmios. Isso fazia com que elas se sentissem especiais, valorizadas, sentissem que ali elas tinham um lugar no mundo, já que a maioria estava enfrentando prostituição, drogas, abandono familiar e político”.

Com isso, a cena Ballroom passou a crescer para além das competições, se tornando também um espaço de apoio. Pietra complementa dizendo que a comunidade servia como um amparo afetivo para aqueles corpos continuarem resistindo e existindo, e se estruturou nisso.

Apesar desses dados, o inicial ponto de origem da Ballroom, antecedente a tudo isso, é uma incógnita por falta de registro. “Um dos registros mais antigos que temos é o documentário Paris Is Burning, de 1989. Depois disso, em 1990, temos Vogue, da Madonna, onde ela traz algumas pessoas da Ballroom. E, assim, a cultura explode de vez pelo mundo, até chegarmos nos dias de hoje”, diz Ícaro.

BRASIL

Segundo o pesquisador Ícaro Silva, Goiânia foi um dos primeiros locais do Brasil com vestígios da cena Ballroom. “Já no final da década de 90, as pessoas mais ricas viajavam para Nova York e participavam das balls, aprendiam coisas, pegavam aulas e vinham aqui para Goiânia”.

Apesar disso, a cena brasileira da Ballroom, como descrita anteriormente – com as houses, as competições, dentre outros itens –, surgiu em Brasília, no ano de 2011, com a House of Hands Up, que é cuidada até hoje pela mother Kona Zion. “Inspirados no modelo das Ballrooms estadunidense e francesa, que são as duas maiores do mundo, começaram a organizar alguns treinos na própria UnB, em alguns lugares abertos de Brasília, até fundarem a Hands Up que foi a primeira casa do Brasil”, relata Ícaro.

A partir da criação da House of Hands Up, ocorre um processo de expansão. As pessoas conhecem a cena de Brasília e passam a fomentá-las em suas próprias regiões, criando uma cena Ballroom brasileira maior e levando-a de Brasília para todo o país – incluindo Goiânia.

GOIÂNIA

Em Goiânia, aconteceu que algumas pessoas da cidade foram convidadas para participar de um evento em Brasília, evento esse que acabou por ser uma Ballroom. Assim, essas pessoas passaram a trocar contato com a cena de Brasília e trazer para Goiânia. Uma dessas pessoas foi Flavys A’Trois, fundadora da primeira house goianiense.

Por volta de 2016, após alguns anos frequentando balls e viajando pelo país para aprender mais sobre a cultura Ballroom, Flavys decide trazer definitivamente a cena para Goiânia. Conforme relata Ícaro, Flavys, junto de outras pessoas como Gleyde Lopes, começaram a fazer treinos de Vogue – estilo de dança típico da Ballroom – e chamaram mais pessoas para participar através das redes sociais. Conforme o número de participantes desses eventos foi crescendo, Flavys decidiu criar a House of A’Trois, primeira house de Goiânia, em 2017.

Outra figura importante na cena goianiense é Rodrag Witch. Rodrag também participou das primeiras trocas Brasília-Goiânia, além de ter bastante proximidade com o Vogue e sua história por estudar danças urbanas. Tais estudos acabaram aproximando Rodrag dos caminhos da Ballroom, o que levou à fundação da House of Witch, em 2019.

Além desses dois nomes, também temos Pietra Laroyê, com quem tive a honra de conversar. Pietra começou a estudar dança por volta de 2011, onde conheceu o Vogue e acabou se tornando autodidata no estilo de dança, além de descobrir e se interessar pelo Ballroom. “Foi quando eu percebi também que o número de pessoas trans [na comunidade Ballroom] era muito maior que o de pessoas cisgênero, que a diversidade de gênero era bem contemplada nesse espaço e que essas pessoas tinham mais direito de estar, além de serem bem mais acolhidas nesse lugar”, relata Pietra, que também é filha de Flavys, a mother que a introduziu na cena Ballroom.

Apesar disso, Pietra sentia falta das pautas iniciais do Ballroom na cena goiana, o que a levou a criar sua própria casa em 2022, a House of Laroyê, onde trouxe uma nova abordagem para a comunidade da região. “Quando o Ballroom sai de Brasília para Goiânia, ele tem uma estética branca, não vem numa estética preta, travesti, não binárie, sorologia positiva”, Pietra conta. “As conversas eram sobre as danças, as categorias, as nomenclaturas, os tipos de baile, mas não eram trazidos debates sobre racialidade, transgeneridade, travestilidade”. 

A cena Ballroom goiana estourou de fato em 2019, dando uma leve freada em 2020 por conta da pandemia. Apesar disso, a comunidade continuou a se desenvolver e novas casas surgiram mesmo durante o cenário de isolamento. “Nós tivemos algumas casas que surgiram também após a pandemia e nossa cena segue firme e forte, ainda se expandindo”, diz Ícaro.

PÚBLICO-ALVO

Segundo Pietra, o público-alvo das Ballrooms varia de acordo com a região do mundo; mas, no Brasil, essa comunidade é voltada para pessoas pobres, racializadas e trans. “O público alvo tem que ser voltado para esses corpos, até porque, quando começou, começou para esses corpos”, diz Pietra. 

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), a expectativa de vida de travestis e transexuais femininas, no Brasil, é de 35 anos, enquanto que a da população geral é de 74,9 anos. Isso se dá pois esse grupo constitui um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no país, que há 14 anos é o que mais mata pessoas trans no mundo, de acordo com a Transgender Europe (TGEU).

Para Ícaro, o foco principal da Ballroom é trazer essas pessoas e tentar realmente criar uma rede de apoio para elas por conta de toda essa violência que elas sofrem. “É aberto, mas é muito importante entender que, se você é uma pessoa branca ou cis, é preciso saber o seu lugar ao pisar num espaço da Ballroom”, afirma o pesquisador. “A Ballroom foi feita exatamente para desenvolver o protagonismo e as lideranças das pessoas trans e travestis negras”.

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