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Ana Júlia Cruz Costa

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou um relatório com estimativas acerca da população em situação de rua no país, em dezembro do ano passado. De acordo com o estudo apresentado, este grupo de pessoas cresceu quase 40% entre 2019 e 2022. A estimativa obtida confere a existência de 281.472 pessoas dentro dessa realidade e aponta a pandemia de Covid-19 como um agravante para os dados.

Ainda segundo o IPEA, o número de indivíduos em situação de rua no Brasil apresentou uma expansão maior, inclusive, que a própria população nacional. Para chegar em tal resultado, os pesquisadores envolvidos consideraram uma série de fatores: dados oficiais de prefeituras, dados do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Suas), de 2021, e taxas sobre pobreza e urbanização nos municípios.

Ao trazer essa reflexão para a capital goiana, as informações sobre a população em situação de rua na cidade são menos recentes, com registro de uma análise feita antes da pandemia, no ano de 2019. O trabalho em debate foi fruto de uma parceria entre o Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Universidade Federal de Goiás (UFG), e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas (SMDH).

Pessoas em situação de rua acampadas pelo Plano Piloto de Brasília (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

Sobre o estudo do Necrivi

O relatório construído pelo Necrivi contribui para o entendimento de qual é o perfil da população em situação de rua presente em Goiânia. Conforme os dados coletados pelo grupo, 81% desta população é composta por adultos e de cada 10 pessoas nesta situação, oito são homens e duas, mulheres. A pesquisa também assinala para uma maioria parda e com o Ensino Fundamental incompleto. Além disso, segundo este estudo do Necrivi, as áreas com maior concentração deste público são o setor Central e as regiões sul, oeste e leste da cidade.

Em entrevista ao Lab Notícias, o coordenador do Necrivi e professor na Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da UFG, Dijaci David de Oliveira, argumenta a respeito dos aspectos estruturais que envolvem esse problema do município. “O Centro-Oeste tem baixa industrialização, é marcado pelo agronegócio, o qual tem poucos segmentos, assim gerando pouco trabalho. Ou seja, não existe um complexo de contratação de mão de obra”, diz o doutor em sociologia. Dijaci ainda complementa seu pensamento comentando que, por a economia do Estado ter essa característica, a manutenção da distribuição de riqueza entre a população não ocorre e o grande produtor permanece na posição de maior privilégio social.

Em sua fala, o docente também tece críticas ao poder público. Segundo ele, por mais que este último estudo do Necrivi seja uma parceria com a SMDH, o plano municipal de combate a este entrave proposto com base nos dados obtidos pelo grupo de pesquisa foi aprovado, mas a nova gestão não direcionou verbas para que políticas públicas fossem implementadas para a resolução disso. O coordenador do núcleo ainda se mostra contrário ao assistencialismo praticado, isto é, ‘medidas superficiais’, como a de doações para essas pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele cita como uma possível saída a política de “primeira moradia”.

Para quem está na rua a situação não muda. Colocar dentro de uma casa é o primeiro passo, a melhor forma.

Moradias do Programa Casa Verde Amarela, em 2022 (Foto: Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional)

ONU alerta sobre desigualdade

Em 2021, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) divulgou um relatório, no qual Goiânia aparece como a cidade mais desigual da América Latina. Tal parecer foi baseado no Índice de Gini, que mede a desigualdade social ao aplicar um resultado de 0 a 1. Segundo este estudo feito pela ONU, Goiânia marca 0,65 no Índice de Gini: o que é considerado extremamente elevado.

Alguns dos fatores considerados para definir o indicador são: renda per capita, nível educacional, expectativa de vida e índice de pobreza. No entanto, alguns especialistas enumeram algumas ressalvas quanto aos dados divulgados pela ONU. Este é o caso do pesquisador Tadeu Pereira Alencar Arrais, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da UFG:

“É preciso considerar, primeiramente, se o recorte é municipal ou metropolitano. Em seguida, é preciso ter a clareza sobre o significado, do ponto de vista dos dados, da desigualdade que não é sinônimo de pobreza. É possível, teoricamente, encontrar uma país e/ou cidade X que seja mais desigual que outra. Isso não significa que seja mais pobre ou mais segregada espacialmente”, afirma o geógrafo.

Foto: Eduardo Ferreira/Defensoria Pública do Estado de Goiás

O estudioso na área de Geografia Regional ainda disserta que: “O fato é que vivemos, desde a democratização, um dos períodos com maior desemprego, informalidade e precarização do trabalho. Isso tudo tem relação direta com a chamada população em situação de rua. Na verdade, para ser franco, nem gosto muito desse conceito, muito embora entenda suas razões. É que esse problema, não apenas no Brasil, não é conjuntural. É estrutural.”

Por último, Tadeu ainda pontua que pode haver uma subnotificação nos dados da pesquisa do IPEA, uma vez que existem problemas na coleta. Além disso, assim como o sociólogo Dijaci, Tadeu aponta o vazio de políticas públicas voltadas a este público: “Temos uma Política Nacional para a População em Situação de Rua que é de 2009, mas a situação, nos ultimos anos, não melhorou.”

É preciso entender que as pessoas utilizam as ruas, praças, calçadas como último recurso. Estamos a tratar da mais pura indigência que não pode, como é feita tradicionalmente, ser criminalizada.

Moradores percebem o problema

A desigualdade presente na capital não passa por despercebido pela população. Seja nas praças centrais da cidade, seja andando pela Avenida Independência, seja nos terminais de ônibus – locais de intensa circulação de pessoas no município – o problema é visto cotidianamente pelos cidadãos goianienses. Anna Letícia, residente no Setor Universitário lamenta sobre o assunto: “Além do terminal de ônibus, vejo muitos indivíduos nessa situação [de rua] perto do mercado que eu frequento. É muito triste, pois eles estão sempre pedindo por comida ou dinheiro e não é sempre que eu consigo ajudar.”

Quando questionada como se sente em relação à população em situação de rua, a jovem declara que: “Não sinto medo em relação a isso, mas sim incômodo. A população em situação de rua não deveria estar nos terminais, tampouco nas ruas das cidades. O governo deveria prestar apoio a esses indivíduos, criando casas ou instituições de apoio, e inserindo eles de volta na sociedade.”

Foto: Rede Metropolitana de Transportes Coletivos (RMTC)

Mayara Liz, de 26 anos, também reflete a respeito do problema. A estudante de Relações Públicas conta a revolta e os receios que esta realidade geram nela: “Eu me sinto um pouco revoltada pela forma como os representantes do povo parecem se anular diante essa situação e triste, porque não há muito o que eu possa fazer para ajudá-los. Além disso, também fico temerosa, porque muitos acabam fazendo ‘cantadas’ machistas ou dizendo coisas desnecessárias.” Ela finaliza dizendo: “Há quase 6 anos moro em Goiânia e, há quase 6 anos, percebo a quantidade de pessoas em situação de rua espalhadas pela cidade. No Setor Central, entretanto, o foco é bem maior. Em praticamente toda rua há uma pessoa.”

“Aumentou muito e está sem controle, principalmente aquela região de Campinas, Setor Leste Universitário, Leste Vila Nova. Você vê muita gente em situação de rua, nos bancos da Praça Cívica praticamente sempre tem uma pessoa que está passando por isso. Então, é muito triste mesmo e é ruim não ter nenhuma atitude sobre isso”, diz outro entrevistado. “É muito triste ver essa situação ao ir para faculdade ou quando volto para casa. Percebi um aumento pelas redondezas de onde eu moro, perto do Parque Lago das Rosas, no Setor Oeste”, conta outra pessoa interrogada pela equipe do Lab Notícias.

O estudante de jornalismo, Fábio Prado, vai além e declara que: “Primeiro, é um sentimento de tristeza, quando eu vejo essas pessoas e o segundo sentimento é de preocupação, mas com camadas de revolta. Quando a gente fala da população de rua, isso não é um problema ‘da’ sociedade, é um problema ‘na’ sociedade, condicionado a outra questão: a do desemprego.”

Luta por maior visibilidade

Apesar de ser um desafio crescente e, como levantado pelos entrevistados, que recebe pouca atenção do poder público, pelo menos no papel existem medidas direcionadas à população em situação de rua. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (Semas), por exemplo, mantém o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop). Segundo a pasta da Prefeitura de Goiânia, o espaço possui cozinha, refeitório, banheiros com chuveiros, lavanderia, salas de atendimento, kits de higiene pessoal e alimentação, entre outros recursos.

No entanto, ao entrevistar o outro lado dessa luta por melhorias para este público, é possível se deparar com relatos como o do coordenador goiano do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), Eduardo de Matos, que reforçam as dificuldades enfrentadas neste cotidiano de resistência.

Participar dessa luta é um desafio. Primeiro, porque a gente chega em um desenvolvimento de vida, na maioria das vezes, em desajuste com diversas áreas da vida: à vezes, desmotivados e desacreditados pela situação de rua. Em um primeiro momento, o movimento te dá um impulso, você acaba encontrando seus pares.

O representante dessa luta em Goiás completa seu raciocínio com um alerta para a administração municipal: “Alguns órgaos até ouvem, mas é muito difícil ainda. A gente precisa avançar muito no diálogo com o poder público” e ainda endossa o que foi dito pelo professor Dijaci sobre medidas mais eficazes para a resolução deste problema, apontando a política de Primeira Moradia como a melhor saída até então experimentada.

O Lab Notícias tentou contato com representantes da administração municipal, porém até o momento desta publicação, não recebeu retorno.

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