Do Bar a encontros da UNE, de bonecas de pano a noites de rock, de Marilene a Tia do Bar

Proprietária do "Bar da Tia, Tio e Primo" fala de suas memórias na adolescência, do início do comércio e de suas experiências com o bar na Praça Universitária
out 30, 2023 ,
Tempo de leitura: 9 min
Geovanna Siqueira

Assine para obter acesso

Leia mais sobre este conteúdo ao tornar-se assinante hoje.

Marilene Lomazzi, hoje mais conhecida como a Tia do “Bar da Tia, Tio e Primo”, tem seus 74 anos e um cabelo vermelho chamativo que contribui com seu charme. Ela diz que sempre o teve assim e não se vê de outra forma. É uma pessoa calorosa e muito atenciosa com seus clientes: trata todos como se fossem um de seus filhos. Também não é para menos, tem três filhos, três netos e sete bisnetos (a oitava chegando aí), então não se esperaria outra coisa.

O bar transmite essa personalidade atenciosa da Tia. Um local rodeado de árvores e algumas tendas que cobrem o sol. Apesar do calor, consegue ser fresco e durante o dia Marilene fica ali: em uma cadeira vermelha típica de bar, encostada em uma árvore perto do caixa. Ali conheceu seus clientes, foi conversando e criando laços, alguns até se tornaram amigos de dentro da sua casa. Em frente ao estabelecimento fica o estacionamento, onde as vans vindas do interior para o HGG esperam os pacientes. Foi assim que tia conheceu a rotina deles, logo foram se aproximando quando precisavam de um banheiro ou um local para esperar serem atendidos, hoje, ela já fica à espera para recebê-los.

Marilene sempre gostou de Rock, conheceu seu falecido marido assim e relembra, rindo, que seu pai abominava o estilo musical. Ela se lembra com carinho de como tudo começou. Em 1985, ela e o marido Edson abriram um bar na Praça Universitária, que não demorou muito para virar quase um ponto turístico do local. Tia resume sua vida no bar, fala dele com muito orgulho e alegria. Ela e o marido abriram o estabelecimento com a necessidade de trabalhar: afinal, como o esposo era um cantor de rock e seu pai não aceitava o trabalho do genro, precisava ganhar o sustento. O pai dela era implacável e dizia que o marido da sua filha cantava “nas orgias da noite”.

Marilene lembra a figura importante que seu esposo Edson foi. Hoje conta sorrindo da preocupação que ele tinha com as meninas que frequentavam o bar. Se ele percebesse que estavam sendo incomodadas por algum homem, logo procurava saber se elas conheciam o sujeito ou pedia que o homem se retirasse. Saudosa, Tia o definiu como um homem carinhoso e trabalhador. Houve uma época que ele passou a vender jantinhas e as pessoas iam ao bar só pelo arroz. “Hoje não tenho ele, só a saudade ficou, mas aqui tudo transpira ele. A gente foi muito feliz, tivemos nossos percalços como todo mundo tem, mas fomos muito felizes” diz, pensativa.

Enquanto fala, aponta na direção onde ele cozinhava as jantinhas: uma área livre ao lado direito do bar, coberto só com a sombra das árvores, a combinação perfeita com o estabelecimento. Em frente ao bar, quase no estacionamento, ficam as tendas e as mesas vermelhas de plástico. Dois latões pretos com banquetas, criam um tipo de mesa peculiar, dando outra beleza pro lugar. Existem algumas mesas espalhadas no pátio do lado esquerdo do bar, mesas que lotam à noite, principalmente nas sextas-feiras com o rock ao vivo, trazendo por completo a essência do espaço.

Foto: “Bar da Tia, Tio e Primo”

Tia demonstra ser uma pessoa grata e feliz com a vida que tem. Mas quando começa a falar dos filhos, seu olhar viaja em um misto de orgulho e lembranças. “Eu os amo muito, demais”, ressalta. Conta que seu primeiro filho fez faculdade, mas não seguiu a profissão em que se graduou. A segunda chegou ao final do curso, mas com casamento e trabalho, ficou difícil concluir. Lênio, o caçula, quase terminou arquitetura, mas preferiu seguir com o bar. Hoje ele é mais conhecido como Primo. A Tia inclusive, vê em Lênio muito de Edson: trabalhador, disposto e preocupado com os clientes e atento à segurança das meninas que frequentam o bar. “Aquele carinho que o pessoal tinha pelo pai dele, passou tudo pra ele”. Ela conta sobre ele sorrindo e concentrada em continuar. Diz que ele é sua paixão, mas como mãe, logo em seguida exalta que seus outros dois filhos também são.

Marilene ressaltou muito que a formação no ensino superior é a coisa mais importante. Inclusive, acredita ser a primeira figura de autoridade a dizer para os estudantes que vão ao bar, que fiquem na faculdade, que não matem aula e que deixem para ir ao bar depois das aulas. Para Tia, quando se tem um diploma, você tem um estudo e isso faz a diferença na sua vida, por isso, está sempre cobrando aos seus alunos que permaneçam na universidade. Por causa disso, Tia se entristece quando descobre que um cliente seu abandonou os estudos, independente do motivo. Gosta quando um cliente de anos atrás reaparece, gosta de saber como anda sua vida e gosta mais ainda que não perca mais o hábito de voltar ao bar. Tia sente como se fossem seus filhos. Na verdade, ela os tem como seus filhos.

Marilene conheceu tantas pessoas com o passar dos anos, que conta com orgulho as muitas vezes em que foi reconhecida. Se lembrou de quando foi a um hospital e o médico revelou ser um antigo cliente. Outra, quando sua irmã de Brasília foi atendida por um médico que também foi seu cliente. Tia compartilha essas histórias como se ela os tivesse formado ou os criado. Não só os alunos, mas andarilhos e pacientes vindos do interior também têm Tia com muita consideração. Ela reconhece isso e deixa claro ser recíproco, seu bar é o único da praça que tem banheiro e água bem gelada, sendo assim, é o Bar da Tia que traz mais conforto para esses pacientes que vão ser atendidos no HGG próximo dali.

Quando Marilene fala das dificuldades que passou com o bar, ela dá ênfase na pandemia, na qual o bar ficou fechado por dois anos, e para ocupar a cabeça, relembrou uma paixão de quando ainda era menina: fazer bonecas de pano. Marilene passou a doar algumas dessas bonecas na pandemia, apesar de que hoje ela prefere manter todas guardadas porque acredita que nem todos têm o cuidado que deveriam ter com suas produções.

Ainda no assunto da pandemia, Marilene fala sobre as perdas dos clientes, alunos, professores e amigos que frequentavam e se tornaram uma ferida no coração. Com as mudanças rápidas que esse período trouxe, veio também a desconfiança de Marilene com a sociedade. Ela cita que não é chegada a política, pois seu pai viveu 88 anos esperando uma melhora na sociedade e essa melhora não veio, mas passou para ela essa esperança. Diz que já está com 74 anos e também não vê grandes mudanças, que os preconceitos são os mesmos e que ao invés de melhorar ela tem a impressão que piorou. Já com o tom de indignação, Tia diz que nunca aceitaram preconceito no bar, que sempre receberam todo tipo de gente e sempre estiveram lá para dar apoio.

Marilene conclui que está ali para apoiar, com os os estudantes ela orienta a permanecerem na universidade. Os andarilhos ou até pacientes que vêm do interior ela tenta ajudar nem que seja jogando conversa fora e com o local acolhedor, diz que as vezes só com palavras podem melhorar o dia deles. Quando fala de ausência, Marilene diz que sente falta de mais presença dos estudantes da PUC, que diminuiu bastante com o passar dos anos e dificilmente vê uma mesa cheia apenas com jovens da PUC.

Ainda conversando sobre as ausências e mudanças que o tempo trouxe, Marilene ressalta que antigamente a Praça universitária tinha muito mais eventos culturais. Hoje ela admira o trabalho dos meninos que fazem as batalhas de rima na sexta-feira à noite. Ela admira o trabalho, mas prefere ouvir a boa e velha guitarra do Rock. Relata também os encontros da União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Estadual dos Estudantes (UEE), que com o passar dos anos já não ocorrem mais. Ela não se lembra quando foi a última vez que a UNE veio, já a UEE apareceu pela última vez em 2020, a Tia acredita que isso ocorre devido a mudança de pessoas no movimento e as mudanças de ideias.

Marilene ou Tia, é assim, gosta de dizer que tem fulano ou ciclano como filho e no final dessa conta todos são seus filhos: os clientes, seus funcionários, a banda que toca sexta à noite, os pacientes do HGG e claro, seus próprios filhos. Ela ainda conta que faz os salgados do bar com muito orgulho na voz, que adora saber da vida de seus estudantes que voltam depois de tempos com a vida já feita. Que ama seu cabelo curto e vermelho e não pretende mudar, que ama ter construído uma família com Edson e é grata e feliz por ter traçado sua vida no Bar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *