A Perda da Língua Kadiwéu: O dano causado pelo tempo e agravado pela ausência de políticas públicas

Profissionais da educação denunciam a falta de recursos educacionais que respeite as regras da língua kadiwéu e moradores da aldeia Alves de Barros relatam a perda do idioma nativo entre os jovens e adultos.
dez 22, 2023 , ,
Tempo de leitura: 11 min
Geovanna Siqueira

Os Kadiwéu são descendentes dos Mbayá, um dos povos do Gran Chaco que compõem o grupo étnico e linguístico Guaikurú. Os Kadiwéus são os únicos descendentes sobreviventes dos Mbayá e são conhecidos por sua habilidade na cavalaria e ficaram populares como índios cavaleiros ou índios guerreiros, por terem participado na Guerra do Paraguai em 1864.

Os Kadiwéu estão localizados a leste do rio Paraguai, sul do Mato Grosso do Sul, no município de Porto Murtinho, mas a cidade mais próxima das aldeias Alves de Barros, Campina e Córrego do Ouro é a cidade de Bodoquena, a 57 quilômetros de distância. Os Kadiwéu estão divididos em seis aldeias: Barro Preto e Tomázia são próximas do rio Nabileque, e a aldeia São João, do rio Aquidabã. Estas três aldeias são mais próximas da cidade de Bonito. As outras línguas faladas na mesma região onde se fala o kadiwéu são o terena e o guarani, sendo que dentro da área kadiwéu há falantes destas duas línguas.

Segundo os dados mais recentes da Funasa, em 2006, os Kadiwéu somavam 1.629 pessoas. Desde então, não obtivemos números mais recentes, sendo o último da FUNAI em 1999, que apontava 1.592 Kadiwéus. Independente de não ter registros de quantos desses indígenas entendem a língua mas não falam, há muitas pessoas nesta condição. Não é a maioria, pois a maioria só fala português. Os Kadiwéus estão, portanto, diante de uma língua enfraquecida, com grande perigo de extinção.

SITUAÇÃO LINGUÍSTICA DA ETNIA

A aldeia principal é a Aldeia Alves de Barros, pois é nesta que reside a liderança kadiwéu. Com base na pesquisa de mestrado de Vanda Pires (moradora e professora na aldeia Alves de Barros) atualmente a aldeia principal é composta por 857 habitantes, sendo a principal e a mais populosa. Porém, apenas 276 desses habitantes são falantes da língua kadiwéu, menos de um terço do total de moradores, em um total de 78 famílias. 

Embora a aldeia Alves de Barros seja a povoação com mais falantes do kadiwéu, o português é bastante predominante e em aldeias menores é até mesmo a única língua. Ainda baseado na pesquisa de mestrado de Vanda Pires, o número de falantes em todas as outras aldeias não chega nem à metade do número de falantes da aldeia Alves de Barros. Os falantes de kadiwéu usam o idioma nas suas modalidades falada e escrita, sendo a escrita bastante usada no WhatsApp, mas não tanto em outras redes sociais. Há ainda pessoas que não utilizam a escrita por não estarem totalmente alfabetizados em kadiwéu. 

A língua Kadiwéu é a única registrada pelos pesquisadores como uma língua polissintética no Brasil, ou seja, a fala do homem e da mulher são diferentes. Os homens têm uma língua e as mulheres têm outra, ambos se entendem, mas culturalmente um não pode falar na língua do outro. Além disso, as diferenças ente as duas estão no uso das vogais que são trocadas.

“Roda de conversa, Vanda e Edson”
Foto: Aluno anônimo da oficina de fotografia na aldeia Alves de barros

Vanda Pires é uma mulher Kadiwéu, é moradora da aldeia e fez sua pesquisa de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sobre a língua kadiwéu, também é professora na escola Estadual Indígena Antônio Alves de Barros. “A gente já nasceu com ela” é o que Vanda responde sobre a origem da separação linguística. Ela relata que não tem conhecimento da explicação da língua ser polissintética, o porquê dos antepassados terem feito essa separação e que as pessoas da aldeia nascem sabendo dessa separação linguística. É natural conhecerem a diferença na fala, todos entendem a língua, mas não está sendo passada de geração para geração algo que é deles, a prática está se perdendo e muitos já não falam mais.

De acordo com Vanda Pires, nos dias de hoje não existe mais essa separação, as meninas quando vão utilizar a língua nativa, utilizam a língua masculina. “Acho que o contato e a prática da língua portuguesa [intensificou o distanciamento com a língua nativa]… Falam mais o português e o português não é polissintético. Então a nova geração, infelizmente, já parte para a língua do homem. Agora a gente vê situações em que meninos falam a língua da mulher, é bem menos, mas a perda é a mesma, né?”, Vanda pontua.

“O enfraquecimento da fala já é de se preocupar, mas nosso desafio como professor aqui é mantê-la viva” é o que diz o Diretor Laércio do colégio estadual, sobre as problemáticas que foram se desenvolvendo na linguagem local. O diretor ainda esclarece que além da perda da diferenciação dos gêneros na fala, os jovens não falam as palavras corretamente e a maioria não conhece a escrita, o que o faz acreditar que o idioma sofreu alterações de dentro dos Kadiwéu e talvez não consiga mudar. Laércio pontua que manter a língua Kadiwéu viva não depende só dos professores, mas também do interesse do restante da população, que é importante que o restante da aldeia tenha essa preocupação e vontade e entenda a importância de resgatar a expressão. “Não adianta de nada eu como educador ter essa preocupação se a comunidade não se preocupar dentro de casa”, ressalta Laércio.

Diretor Laércio”
Foto: Acervo pessoal

O enfraquecimento da língua kadiwéu é perceptível não só em crianças e adolescentes, mas em adultos também. E novamente o problema se estende na desvalorização da língua feminina. Para Vanda, até mulheres adultas estão perdendo o costume de utilizarem a língua delas e conversam na língua masculina. A professora também conta do que ouve dos idosos da aldeia: “E até hoje mulheres mais velhas e os anciãos comentam, acham um absurdo entre eles. Falam que antigamente era uma vergonha uma mulher falar a língua do homem, e hoje é quase que natural”.  A perda cultural do idioma dos kadiwéu foi tão significativa que algo que antes era vergonhoso e impossível de acontecer, hoje ocorre com naturalidade.

Abordando sobre a perspectiva dos idosos da aldeia, Jadirson da Silva Pinto, coordenador pedagógico da escola estadual, informou que existem anciões que não compreendem com clareza o português, o que dificulta a inserção dessas pessoas dentro da comunidade que está falando o português predominantemente. Enquanto jovens e adultos estão perdendo seu idioma natural, idosos não estão totalmente acostumados com a língua portuguesa.  

Vanda informou que durante sua pesquisa para o mestrado estudou que a língua Kadiwéu é a única língua polissintética no Brasil. Outros países como Groenlândia, algumas regiões do Cáucaso e alguns povos na Argentina também possuem o idioma polissintético. Para Vanda, a língua é o que representa a identidade de um povo e preservá-la é uma forma de preservar suas origens.

A professora ainda exemplifica uma situação que sua filha passou quando foi recorrer à bolsa indígena na universidade:Eu tenho uma filha que o pai dela não é indígena. Então, se você olha pra ela, ela não aparenta [ser] indígena, mas ela nasceu e tem todos os documentos aqui na Alves, ela é moradora. Então, na universidade, ela foi recorrer à bolsa indígena, chegando lá, a mulher falou que ela não podia se fazer de indígena e pedir a bolsa. E minha filha falou pra ela: ‘Olha, eu não estou me fazendo. Eu sou indígena, eu tenho toda a minha documentação, eu tenho uma liderança, eu tenho uma aldeia, eu tenho uma língua, eu sou falante da língua Kadiwéu’. Então são provas de quem você é que não podem tirar de você”.

REIVINDICAÇÕES E PROJETOS PARA REVERTER A SITUAÇÃO

Pátio da escola Antônio Alves de Barro”
Foto: Aluno anônimo da oficina de fotografia

Na Aldeia Alves de Barros funcionam duas escolas, a que comporta o ensino fundamental é a Escola Municipal Indígena Ejiwajegi e a escola estadual que comporta o ensino médio se chama Escola Estadual Indígena Antônio Alves de Barros. As duas também formam um centro cultural da Aldeia. O colégio estadual existe desde o decreto Nº 15.481 de 27 de julho de 2020, sendo sediada no município de Porto-Murtinho no Mato-Grosso do Sul. O segundo artigo esclarece que a Secretaria do Estado de Educação deve prover os recursos e materiais necessários para o funcionamento da escola. 

Apesar do decreto e do que se espera que uma escola possa ter, a professora Vanda compartilha que a Secretaria do Estado da Educação não disponibilizou um professor para a língua Kadiwéu e nem materiais separados para o aprendizado. De acordo com ela, o ideal seria um professor homem para os meninos e uma professora para as meninas e livros didáticos completos e que respeitassem a separação linguística. O diretor Laércio denuncia a falta de entendimento da secretaria da educação quando é reivindicada: “A nossa briga até hoje com a secretaria da educação é com os gêneros. A secretaria encaixa tudo em um pacote só, ela não quer entender que existem duas línguas, dois gêneros”. Além disso, Laércio também relata que essa “briga” é com a Secretaria de Educação de Porto Murtinho. O LabNotícias (LN) entrou em contato com a Secretaria para descobrir mais sobre a situação e não obteve retorno.

“Olha, uma das coisas que a gente tem lutado é que a escola consiga colocar na grade curricular para que tenha uma professora da língua feminina, e um professor para língua masculina. Temos aula de língua indígena, porém, ela é uma mistura, o professor não tem trabalhado as duas porque não dá certo”. Essa fala é da professora Vanda, que denuncia a falta de prioridade que a Aldeia tem quando se trata do ensino da linguagem. Ela ressalta o mesmo problema apontado pelo Diretor Laércio, que a escola sempre reivindica à secretaria de Educação, porém: “Eles sempre alegam que é uma língua indígena e pra eles isso já basta. E por quê? Por falta de conhecimento deles. Pois é uma língua muito complexa, é diferente da linguagem de outros povos”.

Para a professora, o ensino da língua também deveria ser levado aos moradores que nunca tiveram a oportunidade de aprender a falar a própria língua, é importante também iniciar o conhecimento do idioma desde o fundamental, para que as crianças tenham mais conhecimento e entendam a importância cultural da fala Kadiwéu.

Independente de políticas públicas ou recursos educacionais, a comunidade Alves de Barros pretende montar uma rádio para facilitar a comunicação geral da aldeia, seja para avisos das Brigadas (combate a queimadas), reuniões do cacique ou eventos em geral. No entanto, o coordenador Jadirson pretende unir a rádio e o fortalecimento da língua Kadiwéu. Ele acredita que montar uma programação sendo falada na língua nativa, pode trazer de volta o costume de ouvir e falar a linguagem originária, que poderia também contribuir para os idosos, que são mais familiarizados com o kadiwéu do que com o português, potencializando a “língua mãe” como ele expressou. “E podemos pensar em fazer um programa para os jovens apresentarem na língua”: para o coordenador é a melhor opção para habituar os jovens com o idioma deles, enquanto não há políticas públicas adequadas para preservar uma cultura linguística.

Adolescentes da aldeia Alves de barros
Foto: aluno anônimo da oficina de fotografia

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