Religiões Afro-brasileiras em Goiânia e a ignorância da população

Religiões de matriz africana compõe a anos a cidade de Goiânia e resistem a intolerância religiosa da população e a falta de políticas publicas do estado
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Geovanna Siqueira

Religiões afro-brasileiras ou de matriz africana:
Tambor de Mina é o nome da religião afro no Maranhão, também praticada no Piauí, Pará e outros estados da Amazônia. Tem a mesma origem que o vodu haitiano, nos povos jejes, fom e eué. Os sacerdotes se chamam vodunos e as sacerdotisas vodunces. Nele são cultuados voduns, orixás, gentis e caboclos.

Xangô é o nome da divindade iorubá do trovão. Essa divindade é tão importante em Pernambuco que batiza a religião afro no Recife. Na cidade, os praticantes são chamados de xangozeiros.

O candomblé é a religião de matriz africana mais conhecida e celebrada no Brasil. Se espalhou da Bahia para os outros estados, chegando até mesmo no Rio Grande do Sul. Existem vários graus hierárquicos dentro de um candomblé: abiã (simpatizante), iaô (iniciado), ebomi (irmão mais velho com 7 anos de iniciado). Titulares de cargos vitalícios como alaxé (guarda dos implementos sagrados), alabê (tocador de atabaques), axogum (sacrificador), iabassê (cozinheira), amorô (responsável por Exu), equede (cuida dos orixás manifestados), ogã (contribui materialmente com o terreiro), babalaô (adivinho) e babalorixá (pai de santo) ou iyalorixá (mãe de santo).

Religiões afro brasileiras são aquelas criadas no Brasil e que preservam os cultos tradicionais, porém, são cantadas e faladas em português, como a umbanda e a Quimbanda. Já as religiões de Matriz africana, são aquelas que preservam até hoje toda a cultura africana, os cultos são realizados na língua africana, as danças e as músicas são cantadas e dançadas na língua e na origem da África, os instrumentos usados, tradições de iniciação na religião e até a alimentação são únicas da África. No Brasil, a única de matriz africana é o candomblé. O batuque, xangô e Jeje são variações do candomblé e por isso também são de matriz africana.

INVISIBILIDADE DOS TERREIROS EM GOIÂNIA

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) centralizado em Goiânia, informou ao Lab Notícias que os dados do censo de 2022 ainda não estão disponíveis e o mais recente é o Censo Demográfico de 2010, com as variáveis de religião e sexo.

Em 2010, a população goiana totalizava 1.302.001 pessoas, dessas, 1.064 faziam parte da Umbanda, que era equivalente a 0,08% dos habitantes. Já no Candomblé, foram registradas 177 pessoas, sendo 0,01% dos cidadãos. Ao buscar por outras religiões afro-brasileiras em Goiânia, o IBGE registrou apenas 60 pessoas obtendo uma porcentagem de 0%. Esses dados são de 2010, então não conseguimos presumir se houve um crescimento ou se permanece assim.

Ainda neste censo, a quantidade de registros lançados só da religião evangélica, independente da vertente, somam 844.910, resultando em mais da metade da população daquele ano. E os católicos eram 662.570 pessoas, que sozinhos também seriam classificados como metade dos habitantes da época.

Porém, com a pesquisa “Religiões de matriz africana em Goiânia: Entre práticas e preconceitos” realizada pela estudante de história da UEG, Clarissa Adjuto Ulhoa, é mostrado que o processo de invisibilidade é continuado ou legitimado pela própria comunidade das religiões de matriz africana, pois as mesmas continuam denominando seus templos como centros espíritas, ocultando numa designação kardecista, que são práticas religiosas completamente distintas e particulares.

Além disso, a Presidente do Movimento Agô, Mariléia Lasprilla, afirma que o censo do IBGE não está de acordo com a realidade mesmo em 2010, pois a maioria dos terreiros são registrados como centro espíritas, centro cultural ou como associação. A presidente ainda explica a importância do registro correto dos terreiros: “Se a gente não está legalizado, nós não existimos. Se nós não temos registro, se não temos CNPJ, então a gente não existe para a sociedade nem para o Estado. Se a gente não existe para o Estado, como vamos requerer políticas públicas, ou requerer os nossos direitos como o povo de terreiro, sendo que a gente não existe? Não tem um registro?”.

Esta prática ocorre até hoje devido ao período que a igreja católica proibia a utilização de elementos africanos em cultos religiosos no Brasil. Inclusive, tinham forte sincretismo religioso ocorrido com o catolicismo, tudo isso, fruto do que historicamente é chamado de imposição inquisitorial da igreja católica. Mariléia confirma isso quando conta que quando os senhores vinham fiscalizar se os negros es­tavam cultuando os deuses africa­nos, eles falavam que estavam cul­tuando um santo católico.

Com base no estudo coletado na Secretaria de Planejamento Municipal (Seplam), a configuração do espaço urbano também influencia na invisibilidade dos centros umbandistas ou candomblecistas. A predominância de Igrejas Católicas, tanto a respeito da quantidade de instituições religiosas, quanto das localizações que elas obtêm, são privilegiadas ou centrais. Enquanto os terreiros estão em menor número e localizados em regiões periféricas da capital goiana e mais afastadas do centro. Além disso, centros de umbanda ou candomblé são realizados em uma casa, sem nenhuma indicação ou bem discreta de que ali é um centro religioso.

Esse segmento religioso passou por um processo de invisibilidade, o que pode ser verificado também, pelo total desconhecimento de grande parte da sociedade goiana a respeito da existência de templos umbandistas e candomblecistas.

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Em Goiânia, o efeito do apagamento das religiões afro-brasileiras ou de matriz africana, deu seguimento aos preconceitos raciais e à intolerância religiosa. Em novembro de 2003, por exemplo, o artista baiano Tatti Moreno realizou uma exposição de esculturas dos orixás no Parque Vaca Brava. Essa exposição foi inaugurada na capital goiana no dia da Consciência Negra e permaneceu até o final do natal do mesmo ano com vários conflitos religiosos.

O que estava previsto para ser uma forma de divulgação e valorização da cultura africana, foi interpretado como uma afronta às demais religiões por grande parte dos evangélicos de Goiânia. O Jornal Diário da Manhã realizou uma matéria sobre essa exposição no dia 20 de Novembro de 2003. Nessa matéria, o jornal fez algumas entrevistas e em uma delas está o evangélico Misael Oliveira, que disse: “Aqueles monumentos estampam a figura do demônio e nada representam para o cidadão goiano, que não possui uma cultura ‘de terreiro’.”

O entrevistado pelo Diário da Manhã, além de não ter o conhecimento da presença de religiões com outra vertente que não seja cristã, ainda enxerga um ato de valorização cultural que ocorreu no Dia da Consciência Negra, como um evento ofensivo à população goiana. Outros depoimentos (também por evangélicos) colhidos pelo Jornal Diário da Manhã, reivindicaram que o uso do espaço do parque fosse democrático, direcionados a todas as igrejas, que muitas vezes lhes foram privados deste direito.

Mariléia Lasprilla lembra do caso de 2003 e comenta: “O problema é que eles querem que a gente sempre faça as coisas caladinho, escondido, nas periferias, né? Você não pode sair e ir pra um setor elitizado, como o Bueno, num lugar onde vai elite, na frente de um shopping, né? Porque ali você vai ter uma visibilidade, eles não querem isso”

Em 2018, Goiás ficou em 1ª lugar em intolerância religiosa segundo a pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos, com sede em Brasília. A pesquisa demonstrou que Goiás tinha tendên­cia a ocupar lugar de destaque quando o assunto é violência.

Ainda no parâmetro de Goiás, em 2014 mais de 10 casas de terreiro foram atacadas no entorno de Brasília, onde foram destruídas, tacadas a fogo e invadidas com a caminhonete derrubando o portão e até hoje ninguém foi responsabilizado pelos atos. Mesmo com as vítimas indo procurar os direitos na delegacia e em federação, ninguém nunca foi responsabilizado

Mariléia Ferreira da Silva, conta da violência que mais marcou sua trajetória e que deu a ela coragem para criar o movimento Agô. De acordo com ela, seu filho parou de brincar no condomínio do prédio por causa de uma outra criança que estava o ofendendo. Ao tentar resolver com a mãe dessa criança, quase foi agredida enquanto o pai do menino, que era policial militar, apontava uma arma para sua cabeça.

Quando foi denunciar, além de passar cinco horas esperando para ser atendida, alegaram que o policial não estava errado pois ele estava em horário de trabalho. A corregedoria disse que não houve intolerância religiosa pois as duas pessoas eram da mesma religião. No caso, a agressora era espírita e Mariléia candomblecista, e isso para a corregedoria não era necessário consequências. “Se você me agredir, se você colocar um revólver na minha cabeça, não interessa de que religião que tu seja, tu tá errada, entendeu?” Lasprilla conclui.

PRECARIEDADES E ACOLHIMENTO

Mariléia Ferreira da Silva é graduada em Administração, pós-graduada em Marketing, está concluindo uma pós-graduação em Políticas Públicas e é presidente do Instituto Cultural do Movimento Agô. O Movimento Agô faz um trabalho de conscientização junto a povo de terreiro, é feito um trabalho de conscientização da real importância de se registrar como ordem religiosa. “E não é um trabalho fácil, porque o nosso povo teve que se esconder nos últimos 500. Na época da escravidão, era esconder que a gente cultuava orixá, era esconder que os nossos orixás eram e são negros, esconder que a gente é macumbeiro, entendeu?” a presidente conclui.

Tanto os terreiros, quanto o movimento Agô, é um espaço acolhedor, onde qualquer pessoa que tenha problema e bater na porta, será atendida. A presidenta conta que o terreiro também faz um trabalho social, acolhe as pessoas onde o braço do Estado não chega, seja pessoas em situação de rua, pessoas que não têm onde morar, pessoas que estão passando fome, mulheres que estão em estado de vulnerabilidade e às vezes até adolescentes rejeitados por não serem aceitos em casa devido ao gênero ou a sexualidade.

Essas pessoas são acolhidas e são tratadas de uma forma tradicional, através de banho, processos de limpeza, através do Bori – Ritual feito não apenas na iniciação, mas sempre que o filho se sentir inseguro, fraco, ou precisando de ajuda, com o objetivo de diminuir a ansiedade, o medo, a insegurança– ou através de alguma outra tradição africana. A limpeza tira a negatividade pra poder melhorar o equilíbrio daquele cidadão para que ele possa conseguir interagir com a sociedade. Mariléia conta que a pessoa não é obrigada a ser iniciada na tradição, na religião, ou se tornar pertencente, ela é acolhida e ajudada.

Além dos próprios terreiros serem um espaço de acolhimento, em Goiânia temos a Federação de Umbanda e Candomblé de Goiás (FUCEG), que funciona como uma federação de proteção e apoio aos terreiros. Entretanto, a presidente do movimento Agô, relata ser decepcionada com a FUCEG e que os únicos terreiros associados a federação hoje em dia são os mais recentes e que as casas mais antigas não são associadas pois conhecem os problemas institucionais que não concordam, Lasprilla classifica como pessoas mal intencionadas que comandam.

Com base no que Mariléia conta, a FUCEG é devedora da União e por isso não têm como adquirir recursos para ajudar as comunidades, assim, dificilmente presta apoio as comunidades antigas, pois foram essas que quando precisaram não foram apoiadas. “A minha visão sobre a FUCEG, independente da gestão de hoje, quando eu precisei, ela não me serviu. E foi a partir daí que nasceu o Movimento Agô” finaliza. O Lab Notícias entrou em contato com a FUCEG diversas vezes e não obteve nenhuma resposta ou retorno.

Antigamente, havia a Superintendência da Mulher e da Igualdade Racial em Goiás, Mariléia conta que quando a superintendência era em conjunto, os terreiros recebiam muito mais apoio, como na pandemia em que eles contribuíram com cestas básicas em Goiás para o povo de terreiro. Porém, hoje está dividido, temos a Superintendência da Igualdade Racial, mas para a presidente do movimento, a comunicação com a superintendência piorou pois percebe que é como se o povo de terreiro não existisse mais. “Pra você ter uma ideia, nós, povo de terreiro, quase não conseguimos nenhuma cesta em 2023. Só em dezembro, o povo quilombola, antes do Natal, ganhou 56 mil cestas. E a gente foi pedir 4.500 cestas para 100 casas do povo de terreiro e eles deram 50.” Lasprilla compartilha.

Das 50 cestas recebidas, o movimento Agô priorizou atender as mulheres que são mães, a maioria de terreiro, que estão desempregadas e que estão com o filho passando fome. A candomblecista acredita que as pessoas que trabalhavam na superintendência sem preconceito e intolerância religiosa ficaram mais enfraquecidas e também gostaria também de uma explicação da responsável pela OVG. Atualmente, Maria das Graças de Carvalho Caiado, é presidente de honra da Organização das Voluntárias de Goiás, é também coordenadora do Gabinete de Políticas Sociais – responsável por desenvolver ações estratégicas, de forma integrada, para combater os vários níveis de carências da sociedade, porém nunca obteve pronunciamento da primeira dama sobre os povos de terreiro em Goiânia ou Goiás.

O movimento Agô tem uma cadeira titular dentro do CONEM, do Conselho Estadual da Mulher e Mariléia está como secretária no Conselho Municipal de Igualdade Racial. Ela explica por que o movimento está como titular na CONEM: “O candomblé é uma tradição matriarcal. E eu como yalorixá e acredito que todas as outras yalorixás, atendem muitas mulheres em situação de vulnerabilidade. Muita mulher que sofre violência doméstica, que sofre abuso sexual, estupro. Então assim, foi uma necessidade minha, porque chegavam muitos casos aqui e eu não sabia como orientar essas mulheres.” E com isso surgiu o Sagrado Feminino, que começou a fazer um trabalho de orientação sobre os tipos e os ciclos da violência. E das mulheres atendidas, 99% estão em estado de vulnerabilidade seja depressão, com síndrome do pânico, ansiedade generalizada e 90% já com casos de abuso sexual ou estupro.

A Geacri, é o Grupo Especializado no Atendimento à Vítima de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, com o objetivo de promover a repressão a crimes de ódio, as investigações sobre crimes de injúria racial, homofobia, transfobia e demais delitos envolvendo práticas de intolerância ou discriminação. Ela inaugurou em agosto de 2021 e atua não só no âmbito criminal, mas também na conscientização da população e resgate da cidadania das vítimas de racismo, discriminação e intolerância, seja ela por cor, etnia, religião, condição, orientação sexual ou identidade de gênero.

Acervo pessoal: Mulheres do Movimento Agô

COMO CANDOMBLÉ CHEGOU EM GOIÂNIA

A história de João Martins Alves, demonstra a força da ancestralidade. Nascido em Juazeiro, na Bahia, ele chegou ao Estado de Goiás na década de 60, quando pouco se sabia de candomblé. O João de Abuque veio da Bahia para Goiânia junto com o mestre Bimba, que é uma das pessoas que iniciaram a capoeira regional. João de Abuque montou aqui a primeira casa de Candomblé, enfrentou dificuldades e oposição da polícia, mas conseguiu abrir sua casa, na qual foram iniciados muitos dos filhos que hoje também são babalorixás e Yalorixás. Aqui ele “raspou o povo” é assim que Mariléia se refere ao processo de entrada para o candomblé. 

João de Abuque expandiu a religião, tem registro e têm casa já há 50 anos aqui no estado de Goiás. Mariléia comenta que se veio alguém antes dele que era do candomblé, não teve a mesma expansão, nem o mesmo impacto, não iniciou o mesmo número de pessoas. Foi o primeiro babalorixá de Goiás, por isso o povo-de-santo tem e deve reverência àquele que foi o precursor do candomblé no estado.

No dia 20 de setembro de 2006, Pai João de Abuque faleceu em Goiânia, e tornou-se o primeiro ancestral de Goiás. Na tradição africana, o ancestral também tem um papel muito significativo, ele é o protetor de uma família, de um povo. É a força, o axé da família-de-santo. Em cada festa, canto ou oferenda a memória de entes queridos como Pai João de Abuque é revivida, mantendo assim essa tradição que se baseia na ancestralidade para a transmissão do axé, a chama da vida.


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