Casa de Acolhimento Amor de Felipe pretende ser espaço de cuidado: ‘Que consigam esquecer, pelo menos por um tempo, a doença e tudo de ruim’

Maria Dolores Diniz viveu a realidade do tratamento oncológico em outra cidade, e hoje estrutura um projeto de acolhimento e afeto àqueles que passam por isso em Anápolis
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Um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) aponta um cenário preocupante: entre 2023 e 2025, são estimados mais de 25 mil novos casos de câncer, anualmente. Ao mesmo tempo, Anápolis concentra esforços para atender aos pacientes oncológicos, por meio, por exemplo, da inauguração do Centro Oncológico da Santa Casa de Anápolis, ainda em 2021 – uma parceria entre a Santa Casa de Misericórdia de Anápolis e a Associação de Combate ao Câncer de Goiás. Ainda assim, são necessários apoios para os indivíduos afetados por essa situação.

Foi percebendo essa necessidade e tendo que se mudar às pressas para outra cidade em busca de tratamento oncológico especializado que a fisioterapeuta Maria Dolores Diniz teve a iniciativa de reformar a antiga Casa da Criança de Anápolis. Antes gerida pelo seu avô e, posteriormente, pelo seu pai, a Casa da Criança hoje se revitaliza para se tornar a Casa de Acolhimento Amor de Felipe, a qual busca cuidar e dar apoio às famílias que, assim como Dolores, têm que se mudar repentinamente para um novo município em busca do tratamento de um familiar com câncer.

LabNotícias: Primeiro, como você se apresentaria e se definiria? Você pode dizer sua profissão, o que te move na vida, quem você é, mas como você diria, hoje, quem é a Dolores?

Dolores Diniz: Sou fisioterapeuta, trabalho na Santa Casa há 14 anos. Comecei lá fazendo um aprimoramento de fisioterapia, que foi minha porta de entrada para o mercado de trabalho. Sempre gostei muito da área da saúde. Eu me apresentaria como Dolores, que é como eu gosto que as pessoas me chamem. Meu nome é Maria Dolores. Minha família é uma família espírita e, por isso, eu tenho a expectativa do nome muito forte, por ser uma escritora espírita que meu pai admira muito. Eu sou uma pessoa muito teimosa. Quando eu quero uma coisa, eu vou arrumando um jeitinho até conseguir. Eu também sou uma pessoa muito precoce. Casei muito nova e já passei por muita coisa, apesar da minha idade. E eu sou muito positiva, também. Por mais que tenha um lado ruim, eu estou sempre tentando ver o lado positivo das coisas. Hoje, o que mais quero é ajudar. Eu morava em uma instituição filantrópica, dentro do orfanato, literalmente, e tinha contato com todas as crianças que estavam lá para adoção. Eu era privilegiada, porque meu pai e minha mãe tinham condições. Mas vivia no meio deles. E foi a melhor experiência da minha vida, porque eu tenho muita coisa para contar.

(Foto: Maria Dolores / Arquivo pessoal.)

LN: A Casa de Acolhimento surge hoje onde antes era a Casa da Criança, na época fundada por um grupo de pessoas que incluía o seu avô. Você diria que foi uma das influências positivas que te motivaram a reformar o espaço e retomar uma casa de acolhimento? Há alguma história dentro da Casa da Criança que te marcou e marcou a sua personalidade?

Dolores Diniz: Tem, sim: o doar muito. Eu brincava com as crianças e elas queriam brincar comigo para eu poder ir em casa e pegar comida diferente, e eu comecei a perceber isso: eles queriam brincar comigo porque eu levava as coisas que eles não tinham, mas eu nunca me importei. Eu tinha essa troca, esse “doar sem se importar”. 

Houve uma vez em que eu estava no meio dos meninos e chegou um casal para conhecer as crianças, que me pegou no braço e falou para o meu pai: “eu vou levar essa aqui, porque eu gostei muito dela”. Meu pai disse “você pode levar, mas vai ter que levar a família inteira”. Ele perguntou, e eu me lembro disso exatamente: “Mas, como assim? Ela tem quantos irmãos?”. [Meu pai respondeu] “Você vai ter que levar pai, mãe, avó… porque essa é minha filha”. E ele: “Você deixa ela lá no meio das crianças?” [O meu pai disse] “Qual é a diferença delas? Na verdade, é a família dela. Todas as crianças que estão lá são a nossa família.” Eu sempre gravei isso.

Outra coisa que me marcou muito foi o fechamento da instituição. Minha mãe e meu pai sempre se doaram muito para a instituição, tudo que eles tinham era para isso. Então, quando fecharam a creche, eles ficaram arrasados. Meu pai envelheceu dez anos em três meses enquanto via a Casa da Criança abandonada. Eu vi o sofrimento dele de não poder ajudar, então eu digo que é quase uma obrigação continuar isso.

LN: Você diria que ver o quanto o seu pai se doava e como ele foi afetado quando a Casa fechou foi uma das coisas que te influenciaram?

Dolores Diniz: Muito! Na verdade não é nem influência, é quase uma obrigação. Eu peguei o projeto praticamente construído. Um projeto que tem muita história para trás. Então, eu tenho uma responsabilidade muito grande de herança, de honrar o que a instituição foi, porque, quando eles começaram, era muito mais difícil.

Hoje em dia, quando as empresas doam, ganham algo em troca. Antigamente, não. Ajudava-se de qualquer forma. O que eu venho mostrando para o meu pai que hoje é diferente é [a questão] de dar dignidade. Mesmo quando se está doando, não se pode só se doar. Meu pai é daqueles que não julgam: se qualquer pessoa chegar na porta, ele fala “vou te dar um colchão para dormir”, mas acaba não dando dignidade para a pessoa. Ele quer dar um cômodo sem água nem luz, porque “para ele que não tem nada, está ótimo”. E eu tento falar para ele: “Não está ótimo. Se você for ajudar, tem que dar condições, tem que dar dignidade, também, não pode ser de qualquer jeito.” É uma das coisas que eu venho querendo mudar no projeto da Casa de Acolhimento. Não quero que seja um albergue. Eu quero que seja um local onde as pessoas humildes terão a experiência de estar em um hotel. Quando eu vou a um hotel bonito, a uma pousada em Pirenópolis, fico imaginando que a Casa de Acolhimento deve ter essa mesma qualidade. Simples, mas que tenha a mesma qualidade de uma pousada. Quero que as pessoas tenham a segurança de estar lá dentro e que consigam esquecer, pelo menos por um tempo, a doença e tudo de ruim pelo que estão passando.

LN: Como está sendo esse momento de desenvolvimento da ideia e do projeto estrutural? Quem está junto com você nessa idealização e execução?

Dolores Diniz: A Casa da Criança tem uma direção que não está sendo atuante. Na verdade, quem está atuando são as pessoas de fora. Igual à Joyce, que me ajuda todo dia, só com a serenidade dela de chegar. Eu sou muito “mundo da lua”, muito do sonho, e a Joyce é muito razão, então ela me puxa para baixo: “Dolores, vamos colocar no papel e organizar”. Então, ela vem me ajudando muito nessa parte, principalmente, e é só o começo, mas eu sei que ela vai me ajudar muito com a questão burocrática. Tem o Paulo Henrique, que é vice-diretor da instituição, que me ajuda em tudo e extrapola o que ele pode fazer para me ajudar em tudo que é burocracia, porque ele é advogado.

A Casa da Criança ficou fechada durante 3 anos, e perdemos o título que tínhamos de filantropia, então voltamos a pagar imposto e a pagar IPTU. Nos meus dois primeiros anos como presidente da instituição, tive que organizar essa parte burocrática, então tivemos que trocar para um contador especialista em terceiro setor. Eu tive que fazer uma mentoria com a Camila, uma vez na semana, onde ela me mostra quais são os passos. Temos muitas ideias, mas preciso de alguém para me ajudar na organização interna. A Kimmy me ajuda muito, na parte de marketing digital. A Roberta tem me ajudado muito. E o seu Edivânio, que é o meu mestre de obras.  O meu pai doou um apartamento para poder reformar a casa, só que o valor do apartamento só consegue pagar a mão de obra. Então eu preciso do material de construção.

(Foto: Maria Dolores / Arquivo pessoal.)

Deixa eu voltar ao assunto da Casa de Acolhimento. Meu filho teve linfoma linfoblástico de célula C, e desde antes de ele adoecer, eu via muito que a gente precisava fazer alguma coisa com a instituição. É um prédio muito grande que alguém precisava tomar conta, só que eu não sabia o quê, porque tudo precisa de muito tempo e gera muito gasto. Mas chegou ao ponto de o meu pai falar para mim: “nós vamos doar o prédio para outra instituição”, porque está no nosso estatuto que se algum dia fecharmos a instituição, temos que passá-la para outra entidade filantrópica. Não podemos simplesmente nos desfazer do prédio. Então eu falei: “não, pai, calma, vamos tomar conta”. E eu vi que havia muitas pessoas na Santa Casa que dormiam no carro porque não tinham para onde ir, e eu achei uma boa ideia fazer uma casa de acolhimento para essas pessoas que vinham de outras cidades acompanhar familiares que estavam na UTI ou internados no hospital. Pensei “vou fazer uma casa de apoio”. Mas, depois de um tempo, meu filho adoeceu.

Meu filho teve leucemia com 17 anos. Eu achava que a minha vida era perfeita, até que o Felipe adoeceu. Em uma semana ele piorou muito, ficou muito ruinzinho, e foi quando descobrimos a doença. Ele passou por muita coisa, e aqui não havia tratamento para a doença dele. E essa insegurança de ir para outro lugar… fomos porque meu pai pagou nosso aluguel lá. E o Klein, meu marido, também me ajudou muito. Então eu me vi desse jeito, de ir para outra cidade sem ter lugar para ficar, desesperada. O Felipe fez um transplante de medula em Brasília e voltou aqui para Anápolis. Tudo que ele passou foi muito doloroso. Foi fisicamente muito triste, e ele enfrentou tudo. Ele fez até o Enem enquanto estava internado, fazendo quimioterapia. O sonho dele era passar em medicina, e ele passou para medicina na UFG em Jataí, ainda internado. Fizemos a inscrição, mas ele não começou a cursar, porque, depois de três meses, a doença voltou. Fomos para São Paulo, e foi mais outra luta. Ele ficou quatro meses e depois foi a óbito lá.

E o que eu uso hoje, que me motiva, é a minha dor. Todo dia que eu me levanto, eu não tenho vontade de levantar, só penso na dor que o Felipe teve, na dor que ele passou. No início, eu pensei muito “por quê”, né? Por que o Felipe, um menino que era muito bom? Meu marido ficou muito tempo revoltado, de falar que o Felipe era a melhor pessoa que ele conhecia, porque o Felipe não se importava por namorar, nunca tinha saído para uma festa, ele nunca tinha beijado na boca. O Felipe era aquele menino muito CDF, ele era campeão de xadrez na escola, ele era do “ninho de cobras”, que são os alunos com as melhores notas. Ele era o cara, só estudava, bonzinho, bonzinho. Nunca fumou, nunca bebeu. E, então, ele adoeceu. Então é isso que me move, de certa forma. Hoje, eu uso a minha dor para me impulsionar a continuar com a Casa de Acolhimento. Eu acho que depois que eu comecei a me envolver com a casa de acolhimento, a tirar do papel, tem sido a época em que eu estou melhor. Teve época em que eu não conseguia conversar, de tanta tristeza. Parecia estar sem força para abrir a boca. Depois que eu comecei a me envolver com a casa de acolhimento é que eu comecei a melhorar.

LN: Então a forma que vocês pretendem amparar essas famílias seria exatamente o que você percebeu que faltava quando você precisou ir para Brasília?

Dolores Diniz: Exatamente, porque eu fiquei pensando muito “E se eu não tivesse condições?” Dormiria na porta, dentro do carro, também. Mas o desespero da doença é tão grande que você não pensa nisso, você só pensa em ir buscar tratamento. Não pensa onde vai ficar, é tudo muito bagunçado. Você pensa em alugar um apartamento perto do hospital, mas, na hora que vai pesquisar, custa 6 mil reais. Tem gente que passa pelo processo que não tem plano de saúde, não tem nada. Seis mil reais é um dinheiro que ele vai ver em quase um ano inteiro.

Na minha cabeça, eu pensava em outro tipo de público. Depois eu pensei exclusivamente no paciente de câncer. E saber que somos regionais em tratamento, né? Então [Anápolis] recebe gente de Niquelândia, ou do Pará. Um apoio, mesmo, porque tem gente que vem [pensando] “eu vou fazer uma quimioterapia hoje, na sexta-feira, e tenho uma consulta na segunda-feira à tarde”. Mas não tem condições de pagar condução para ir à cidade dela e depois voltar para cá para ser atendido na segunda-feira. Ela não pode cogitar não voltar para a consulta, não tem condição de pagar um hotel. Para onde ela vai? E ela nunca está sozinha, porque a família inteira adoece. O doente da família vai ser a doença da família. Então, sempre vem, ou com o marido, ou com o filho, ou com a mãe, que largaram o trabalho, que não têm dinheiro, também. É tudo muito triste e além da doença.

(Foto: Maria Dolores / Arquivo pessoal.)

LN: Você mencionou a questão do imposto, e, pelo instagram, vocês divulgaram como doar para a Casa a partir da dedução do imposto de renda. De que outra forma a pessoa interessada nisso poderia contribuir com a construção ou com a iniciativa em si?

Dolores Diniz: Estamos começando um curso de cuidados paliativos. Pedimos ajuda para algumas empresas que trabalham com material de construção, mas não recebemos resposta. E a minha iniciativa é no que eu sei fazer. Eu sei de cuidados paliativos, estudei muito. Eu comecei [a estudar] seis meses antes de o meu filho adoecer. Um ano e três meses depois, o médico chegou para falar que meu filho ia entrar em cuidados paliativos. Se eu não tivesse estudado, acho que teria ficado louca. Eu não aceitaria o Felipe entrar em cuidados paliativos com 18 anos se eu não entendesse o que era. Então eu pensei em usar o que eu sei fazer para poder ter uma troca. Vou dar o meu conhecimento para quem tem o interesse. E eu queria muito fazer um grupo de apoio para pessoas enlutadas na instituição, quando estiver funcionando.

Nós vamos fazer, também, uma venda de prata, de brinco e colar. Tem essa minha sobrinha que tem uma marca para venda de acessórios, e ela falou “Dolores, eu doo uma parte da minha venda dessa campanha para a Casa de Acolhimento.” Então, vamos divulgar em cima disso. E estamos recebendo material e dinheiro para material de construção. Podemos montar um pix da instituição, como muita gente vê vídeo, e a gente faz essa prestação de contas depois, mas eu ainda não sei muito.

LN : E, para finalizar, vocês têm uma expectativa de quando a instituição vai passar a funcionar? Hoje ainda estão reformando, ainda no começo, mas existe uma expectativa?

Dolores Diniz: Se tudo der certo, em uns cinco, seis meses, no máximo, vamos estar funcionando, já. E outro projeto que temos, no prédio da instituição também, é o de montar uma clínica onde os profissionais da área da saúde vão doar o seu tempo. Então vamos conseguir, para pessoas carentes, por exemplo, atendimentos para psicólogo, para fisioterapia, para dentista… Um projeto futuro.

E essa questão de grupo de apoio, que eu acho muito interessante. Por exemplo, eu penso muito em quem se suicida. A família fica, e existe um peso em cima da pessoa que perde alguém por suicídio. Então penso em um grupo de apoio específico para a família do suicida, e para a família de quem passou pela doença do câncer. Esses grupos específicos eu acho muito interessante, porque o enlutado consegue compreender a dor do outro.

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