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Geovanna Siqueira

Nos últimos anos tecnologia e arte se tornaram uma combinação comum na nossa vida. Temos artistas digitais, que criam suas obras utilizando exclusivamente recursos eletrônicos e temos também fotógrafos que fazem uso de ferramentas de edição para criar imagens inteiramente novas. Por isso, quando falamos de inteligência artificial criando obras, a situação muda bastante de figura. Nas primeiras situações, a inteligência artificial é meramente uma ferramenta usada para criar, assim como um pincel ou uma espátula para um pintor. Em outros casos, a própria inteligência artificial é capaz de criar integralmente uma obra.

Em fevereiro de 2023, a Netflix lançou um curta anime em que todo o plano de fundo foi construído por IA. A situação foi muito criticada pelo fato da ferramenta ter usado artes presentes na internet de outros animadores para desenvolver o que foi visto no curta. Há também um grande questionamento pela pouca valorização de quem trabalha na produção de anime. Este é um exemplo do que vem se desenvolvendo atualmente, por isso, o Lab Notícias entrou em contato com Alice Fátima Martins, graduada em cinema, artes visuais e sociologia, é também professora no laboratório de produção artística na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV), para entender mais sobre essa situação dentro do ambiente das produções artísticas.

Lab Notícias(LN): O uso de IA tem sido um problema a ser enfrentado no âmbito artístico?

Alice Fátima Martins: Claro que cada um dos avanços tecnológicos comparecem também instigando o campo artístico nas suas experimentações e produções. É preciso que a gente exerça uma crítica em relação ao próprio conceito de Inteligência Artificial, porque é preciso que a gente olhe para isso e entenda que essa nomenclatura é um conceito complicado. Mas vamos lá, ele aparece também como possibilidades, muitas inclusive, de espaços dialogais, de a própria inteligência artificial funcionando como vetor de criação ou de suporte para os processos de criação, etc. Existem muitos projetos e muitos grupos que estão trabalhando com isso e trabalhando dentro da perspectiva que é do pensar essa relação de equipamentos, softwares ultra sofisticados e como eles podem operar fornecendo dados, arranjando dados, ou estruturas narrativas, ou efeitos especiais, o que for, ser no próprio processo de criação, digamos que em parcerias, oferecendo parcerias. Ao mesmo tempo, isso começa a comparecer também como problema, porque abre espaços para questões autorais, para as questões de plágio, que na verdade, no campo da filosofia da arte, da teoria da arte e tudo mais, seja uma questão que está em voga. Quando você pensa na arte, num sistema que é de mercado, e que você pensa na questão da remuneração do artista. Se você entra na questão da autoria e do plágio, é como contra ambientes e contextos em que isso está em risco. Isso é um problema para o próprio sistema, porque aí você passa a ter o dono da gestão dos equipamentos que constituem a inteligência artificial, como também aqueles que vão ser beneficiados pelo capital e os artistas que estariam nessa parceria, não. Mas aí a gente chega também numa instância que é mais adiante, que são por exemplo, no ambiente do cinema, no ambiente das artes performáticas ou performativas, em que a inteligência já incorpora as informações visuais, sonoras, comportamentais e tal, de pessoas, e passa a produzir narrativas com essas figuras que elas vão constituir, e aí os atores e as atrizes já são dispensadas. Isso já tem filme, inclusive, que trata dessa questão, alguns que eu já li, que anteciparam esse problema, como a questão da voz, teve agora essa polêmica de trazer a Elis Regina de volta para uma propaganda e tal. Então, isso é um prenúncio de problemas no sentido do: Nós temos um modelo que funciona de uma determinada forma, e obviamente que a Inteligência Artificial traz possibilidades e traz recursos que desmontam esse modelo. E o que está em jogo, na verdade, é quem tem a propriedade capital, o que está em última discussão é quem que se beneficia nessa relação do capital. Então em termos tecnológicos a gente tem recursos, possibilidades que são extremamente instigantes e interessantes, mas em termos das relações de trabalho, elas começam a sofrer profundas transformações e colocar em ameaça alguns vínculos e algumas relações que estão mais ou menos estáveis ou asseguradas. Então, isso é problema. 

LN: O uso de Inteligências Artificiais pode servir como uma extensão artística?

Alice Fátima Martins: Vamos desmistificar, porque a gente fica imaginando máquinas que pensam, não! São equipamentos muito sofisticados que operam com múltiplos programas em várias frentes, em determinadas funções o nosso cérebro não funciona dessa forma, certo? Nós não conseguimos operar. Então, isso vai funcionar em rede, operando com informações, a gente já está o tempo inteiro trabalhando com elas, os algoritmos fazem parte desse princípio da inteligência artificial. Disso que está sendo chamado de Inteligência Artificial, que são móveis de operação com as informações ultrarrápidas e ultrassofisticadas. Então, com certeza, a inteligência artificial tanto pode funcionar como mecanismos de produção a depender da forma como essas produções possam acontecer, os projetos possam acontecer e tudo mais, certo? Por exemplo, trabalhar com a formação de roteiro para filme que tem determinado perfil, ou que enfim, vai trabalhar com projeto de arte contemporânea, que vai furar essa bolha das relações entre máquinas. Eu me lembro muito do Billie Flusser quando falamos de inteligência artificial, ele fala que nós somos funcionários das máquinas. Então a grande pergunta, no caso da coisa desses equipamentos ultra sofisticados, é perguntar: De que forma nós podemos nos relacionar com esses equipamentos ultra sofisticados nos processos de criação sem sermos funcionários deles, sem estarmos a serviço desses equipamentos. O que é estar à serviço deles? Só apertando os botõezinhos para que eles deflagram os programas pelas quais eles já estão previamente programados. Então, esse eu acho que é o desafio, é mantermos nossa capacidade de autonomia, nossa capacidade de pensamento. E aí pensar como é que essas relações poder vão repercutir em possibilidades de processos de criação do sistema da arte.

LN: Como a arte está sendo mudada pelas novas tecnologias?

Alice Fátima Martins: Veja bem, esses caminhos, esses processos são sempre de mão dupla, de um lado tem as pessoas que vão deflagrando os processos de criação de alguma forma vão forçando a barra no sentido de dizer assim: ‘ mas a gente precisa de equipamento assado e tal’ e as pessoas que são de TI, as pessoas que são de engenharia e vão trabalhando com elas para buscar essas soluções. No início dos anos 2000, por exemplo, eu conheci um cara que se chama Nicola Rios, que é lá do Canadá, ele é artista, um arquiteto e ele queria criar cubos flutuantes, por exemplo. E aí ele trabalhava com uma equipe de engenheiros e esses engenheiros iam com ele, ficavam um tempo testando formas e tudo mais, até ele conseguir os cubos que flutuavam. Mas ele não queria só o cubo que flutua, ele queria também uma imagem em cada face desse povo que flutuava. E aí ele, como artista, ia gerando demandas que as pessoas que trabalhavam com as diversas frentes das tecnologias tinham que buscar inventar soluções. Eventualmente, ao fazer isso, avançavam no campo dos recursos tecnológicos, por outro lado, a gente tem algumas situações que isso é muito recorrente no campo de arte e tecnologia, que é exatamente das empresas que trabalham com as tecnologias de informação e que trabalham com tecnologias digitais de gerarem os equipamentos e assim, artistas e coletivos de artistas vão produzindo seus trabalhos artísticos experimentando o curso do equipamento, se os recursos tecnológicos que estão disponíveis. De alguma forma, essas pessoas acabam criando uma ponte com a popularização dos equipamentos, mas à medida em que se começam a fazer criações com a inteligência artificial, isso chega para o grande público. Por isso que estou falando que tem a via de mão dupla, daqui para lá são artistas, cineastas, gente que trabalha com ficção científica e estão o tempo inteiro forçando a barra nessa direção. A partir do imaginário das coisas absurdas, isso acaba gerando algumas referências para que cientistas e pessoas que trabalham com desenvolvimento tecnológico vão lá e busquem algumas coisas e incorporem. E de lá para cá também, né? Então é nesse campo de trânsito entre as demandas de um lado e de outro, que a arte vai se configurando. Então a arte se transforma sim, é só a gente pensar como que a invenção da fotografia e a invenção do cinema transformaram radicalmente o mundo da arte anterior, porque mudou o sentido, por exemplo, de pintar retrato, antes só se pintava retrato. Eu não preciso, mas se eu quiser fazer retrato, eu vou ter que pensar o por que que eu vou fazer retrato, e isso vai ser melhor ter que fazer uma fotografia. Então a inteligência artificial também vai exercer transformações nesse sentido que se o equipamento me oferece determinadas coisas, então eu vou ter que inventar outras coisas que esse equipamento não dá conta de fazer e vou caminhar nessa direção, ou eu vou verificar disso que ele me oferece, o que eu posso colocar a meu serviço dentro de projeto de criação artística. Então esses desafios se transformam, são transformadores da configuração do fazer artístico, do mundo da arte, do sistema da arte. Entre os anos 2000 e 2010, por exemplo, tinham a discussão da arte e internet, por exemplo, e muito do que era feito em termos de internet era assim: Digitalização dos acervos, dos museus e tudo mais, que migravam para plataformas online. Depois, começou a se pensar que projetos artísticos que já são pensados originalmente para plataformas online para espaços de compartilhamento e que não tenham acervo material que correspondam a eles. Isso são transformações que vão acontecer no percurso do tempo e que com a inteligência artificial isso fatalmente vai acontecer. E sim, são acervos que não foram criados por pessoas, mas foram acervos criados a partir das programações de inteligência.  

LN: Quais são as expectativas para os próximos anos e o desenvolvimentos desses programas?

Alice Fátima Martins: Existem, mas assim, em termos de expectativas, tem uma grande pergunta, uma grande incógnita. Existem questões que estão sendo problematizadas agora, em termos de espaço de trabalho, mão de trabalho também das questões legais, direitos autorais, as questões éticas estão todas sendo colocadas aí e são grandes indagações, tanto que a questão das grandes plataformas, das grandes empresas que lançaram seus programas de inteligência social, aí que o chat GPT, Google e outros já estão funcionando, as pessoas já estão experimentando, já estão trabalhando e agora as pessoas estão correndo atrás pra tentar criar normas e regulamentar isso, para que não fique tão aberto. Como que isso vai funcionar no campo artístico? Não sei. O sistema da arte é um sistema muito estruturado, hierarquizado e muito fechado. Por mais que a gente esteja falando da arte, que é uma coisa aberta e tal, na verdade, ele tem uma estrutura que é muito, muito fechada. Obviamente que vai incorporar isso a coisa da inteligência artificial e vai tentar, de alguma forma, não se sujeitar a protocolos externos ao campo da arte para essa produção. Agora, como isso vai repercutir em termos do mercado da arte? Isso ainda é uma incógnita. Tem esses riscos todos que eu já te coloquei, que tem sido debatido por grupos diversos, eu acompanho como a minha é mais próxima na questão do cinema, eu tenho acompanhado essas discussões mais nesse campo do cinema. E aí tem uma série de funções e de atribuições profissionais no cinema, que começam a estar sob a possibilidade de substituição pela inteligência artificial, desde as coisas mais técnicas até o processo de criação e a própria atuação. Quer dizer, os atores sendo substituídos por pessoas que são geridas e criadas e tudo mais a partir da inteligência artificial. Então assim, tem grandes transformações aí em curso, com toda certeza, mas que a gente ainda não tem noção das dimensões mesmo. Eu acho que os próximos cinco, dez anos vão ser surpreendentes com foram os primeiros últimos dez anos. Se a gente olhar dez anos atrás, como é que nós estávamos lidando com as redes, é muito diferente do tá sendo hoje. 

LN: Existe alguma área no meio artístico que está sendo mais prejudicada por essa nova tecnologia do que outras?

 Alice Fátima Martins: Não sei se o termo seria ‘prejudicada’ mas a área de produção literária me parece que talvez seja um dos primeiros campos porque o primeiro fronte de testagem do processo de criação, em termos das inteligências artificiais e que está mais disponível para o público, é a produção de texto. Então, é a escrita que passa inicialmente pelos processos acadêmicos, mas que avançam rapidamente para o âmbito da produção literária. Porque isso está mais acessível, mais fácil para você lidar com outras coisas de criação de personagem, você vai ter que ter uma elaboração um pouco maior, o usuário vai ter que saber lidar com mais ferramentas do que a questão da produção pessoal literária. Então acho que é essa área porque as pessoas que atuam nesse campo vão ter que rapidamente aprender a lidar com isso e ver como é lidam com essa questão, se incorpora, se não incorpora. Então você começa a ter textos que são criados ao estilo do Manoel de Barros, se o chat GPT fosse uma grande base criando poemas, ele começava a criar poemas nos estilo Manoel de Barros. Mas aí, se você começa a criar, de repente, figuras específicas que têm produção mesmo a partir de um programa de inteligência artificial, como é que as editoras vão lidar com isso? Como que os autores vão lidar com isso? Eu acho que é um desafio bem próximo que já está em curso.

LN: A senhora acredita que o artificial não capta a profundidade do olhar humano ou essa inteligência pode servir como uma extensão dessa profundidade?

Alice Fátima Martins: Tem uma coisa, que os entusiastas da inteligência artificial não levam em consideração, isso de modo geral, quem trabalha com TI, enfim, que é a questão da cultura. Como a cultura se constitui e se transforma no tempo e vai reproduzindo novos sentidos, os equipamentos não acessam isso porque isso é da ordem inclusive da relação da cultura humana. Então, o que se produz com um sistema de símbolos e de sentidos, que nunca está pois está sempre se transformando, decorre de uma relação entre comunidade e com o mundo. Isso escapa a qualquer equipamento. Os equipamentos vão estar funcionando em outra plataforma com informações que podem não ser tão estáveis porque eles se alimentam das informações fornecidas pela espécie humana, por quem opera com esses equipamentos. Esses equipamentos ainda não acessam a questão da cultura, então pronto. E com isso a gente volta na história do Flusser. Temos equipamentos ultra poderosos, ultra sofisticados e que bom! Mas vamos colocar esses equipamentos no lugar de ferramenta, como um auxílio, continua sendo prévio, me desculpe os defensores, mas continua sendo prego e martelo. Opera com muitas informações e informações às quais eu não tenho acesso, por isso que eu vou lá e pergunto o que é isso aqui? E continua sendo ferramenta, quem continua produzindo cultura somos nós.

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