‘Eu sempre estudei outras línguas e a indígena em particular é a que eu mais gosto’: Doutora em Linguística publica dicionário da língua Noke Koi

Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas, Maria Sueli Aguiar, lança dicionário da língua Noke Koi. Obra é resultado de mais de 30 anos de vivência da pesquisadora com a comunidade indígena.
fev 10, 2023 , ,
Tempo de leitura: 15 min
Palavras de um dicionário. Reprodução Internet

O dicionário bilíngue Noke Koĩ-Português/Português-Noke Koĩ foi lançado oficialmente no dia 1 de Fevereiro. A professora dá um destaque especial pelo trabalho feito pelo CIAR (Centro Integrado de Aprendizagem em Rede) que publicaram o dicionário.

Além do dicionário, a professora reitera também sobre o livro impresso Noke Koĩ (Katukina) Pano, livro o quão reúne algumas pesquisas da mesma, ademais, destaque ao CEGRAF [Centro Editorial e Gráfico UFG] que de acordo com a professora fez um trabalho lindo, já que o livro foi exaustivamente revisto.

Com esse projeto importantíssimo para a cultura indígena e para a história do Brasil, a doutora Maria Sueli nos cedeu uma entrevista para contar um pouco do seu projeto e trabalho, seu processo de aprendizado e motivação para executar a pesquisa.

Confira a entrevista:

João Vitor: Gostaria que começasse explicando um pouco mais sobre o seu projeto, sobre o que te inspirou e motivou para a realização dele.

Maria Sueli: Oi João, bom, para falar sobre o meu projeto eu falo um pouco da minha trajetória. Eu morava em Ceres [Cidade em Goiás] e conhecia alguns indígenas da etnia tapirapé e eu sempre fazia exames lá no hospital. E eu queria ir morar na aldeia com o pessoal do SIME, e aí não deu porque eu era de menor, então aí fui para Campinas estudar, e comecei a fazer letras e linguística. Quando participei do projeto Rondon fazendo sobre o levantamento de material didático, e o projeto Rondon, o campus avançado Cruzeiro do Sul é o da Unicamp onde eu estava estudando. E quando eu terminei as atividades nas escolas, né de Cruzeiro do Sul, eu pedi para que eu pudesse visitar uma aldeia e fui encontrei o grupo que chamava Katukina. Hoje ele se nomeiam, se autodenomina por Noke Koi. Então esse projeto era fazer um levantamento linguístico, de como é que eram as palavras e ver a fonologia, morfologia e sintase e foi o que eu fiz durante toda a minha vida acadêmica. E aí a motivação é que, além de já ter interesse de conhecer a vida dos indígenas, em geral e a universidade onde eu estava tinha um campus avançado em um lugar onde tinha o grupo indígena. Então quando eu volto dessa primeira ida lá, decido por fazer um projeto onde eu pudesse começar um estudo dessa língua. Quando começa esse trabalho, aí peço bolsa na Fapesp para fazer um uma pesquisa, uma bolsa de iniciação científica. O caminho era muito difícil, né? Chegava em Cruzeiro do Sul, e assim para conseguir chegar nessa aldeia dava uns 60 km, mais ou menos, e esse grupo Noke Koi, eles são 1.250, mais ou menos, de pessoas, hoje, essa contagem em outubro do ano passado.
E entendendo que era uma língua que não tinha estudo sobre ela, né, tinha poucos. Tinham dois colegas que tinham trabalhado e que estavam trabalhando. Um era colega meu de iniciação científica e uma outra que acho que já era professora que fazia sobre a nasalidade. Com essa realidade de pouco estudo, aí eu começo a fazer essa pesquisa. Para chegar na aldeia era muito difícil primeiro de Campinas, né, São Paulo onde fica a Unicamp até chegar no Acre, aí eu ia de carona com a FAB[Força aérea Brasileira], com o correio aéreo nacional e sempre ia junto com um grupo que era do projeto Rondon. Então, eu continuei acompanhando as equipes do projeto Rondon para realizar meu trabalho, e quando chegava lá o restante era a pé e de barco que foi muito importante porque é uma região que, até hoje, é mais difícil tudo lá é o preço, né? Questão do curso de vida é altíssimo, as condições são difíceis. Até hoje estudar, trabalhar no Acre é dispendioso, né? Uma pessoa tem que ter uma estrutura econômica ou entender como é viver com pouquíssimo recursos. E essa foi então o difícil era chegar até a aldeia, mas a recepção deles foi muito boa para mim, eles me me acolheram do jeito como se eu já estivesse lá vários tempos. E eu me dava muito bem com as crianças, a gente saía para o Mato para pegar fruta, e aí elas falavam o nome das frutas, eu repetia e errava elas riam então, elas me ensinaram muito, né?

João Vitor: Considerando que foi um trabalho delicado, como lidou com o desconhecido?

MS: Sobre a questão do desconhecido, eu não me senti fora do grupo. Eu facilmente me adapto e eu me sinto integrada facilmente, não tenho esse olhar de diferente, eu sempre chego, quando eu chego nos lugares rapidinho eu me sinto acolhida e me adaptando sem achar difícil. Alguns detalhes, alguns comportamentos, por exemplo, que a gente sempre evita, né?! mas nada sempre chamaria atenção. Por exemplo, eu quando fui levei shampoo pra lavar o cabelo e isso foi o que não deveria, né? Deveria ter deixado na cidade, e isso causou um certo espanto porque uma senhora que estava comigo foi usar e ficou esfregando assim virou aquela bola branca na cabeça e quando as crianças olhavam então foi um escândalo, gritaram.
Aí a aldeia inteira foi onde ela estava tomando banho, por que não sabia o que era, se era um bicho,
o que que era né? Então assim tem algumas coisas sempre passam, né? Como você fala, como é um trabalho delicado e a questão do respeito com a cultura do outro, né? Isso tudo… É, fiz bastante leitura, fiz cursos é de antropologia para poder ter noção, quem é o outro. Isso ajudou bastante.

João Vitor: Quanto tempo levou para a realização e concretização desse projeto?

MS: Considerando a questão do tempo que levou para realizar e concretizar esse projeto, eu começo a primeira vez que eu vou em 1984, que eu fui como parte da equipe, e depois segui, como eu falei, com as outras equipes sempre que eu pegava carona com o pessoal da FAB e com o pessoal da correio aéreo nacional, e, sempre aproveitava, também, quando ia as equipes do projeto Rondo. Então considerando que eu pude entregar esse trabalho só em outubro do ano passado dá uma faixa de uns 38 anos trabalhando, né? E que todo tempo é voltando, indo lá, e vindo, e voltando ficava no máximo 40 dias. Aí voltava para a cidade, voltava para Campinas o máximo de tempo que eu fiquei foi de 40 à 45 dias, e outras vezes teriam 15 à 20 dias lá, né? O trabalho de gravação e convivência com eles para mim foi muito rico, e agora o maior prazer de ter concretizado. Então pude detectar como é que é estruturada a gramática, que é um livro que chama: “Língua Noke Kin (Katukina) pano”. E aí, é esse que foi publicado pelo CEGRAF da UFG, ele ficou pronto acho que em setembro, e aí quando foi em outubro entreguei para eles e na sequência desse trabalho, eu fui fazendo anotações desde o início com o dos termos, né? E que acabou concretizando como um dicionário online, que foi feito pelo CIAR, e depois, eu pedi que eles fizessem no formato de Word para imprimir para levar para Aldeia. Então o dicionário ele foi feito para colaborar com a minha pesquisa, porque toda hora que nenhuma palavra eu sabia, eu ia consultar, né? E resultou num trabalho que para eles eu pude entregar também esse dicionário.
Entendendo que o dicionário ele nunca fica pronto, você finaliza. Porquê? porque uma língua viva sempre tem palavras novas que aparecem ,né? E algumas que vão sofrendo alterações. O que acontece com qualquer língua, inclusive com a deles, né? Então o trabalho foi entregue e não a coisa finalizada. Olha, eu terminei minha parte, aí os professores vão continuar fazendo o trabalho, olhando e ampliando revisando uma sequência, porque o importante é que eles tenham esse interesse de estudar sua própria língua, porque eles são falantes das línguas como da língua Noke Koi, como nós somos falantes do português, mas para entender do português tem que ser um estudioso do português, então das
concretização, assim de realização, e satisfação minha foi entregar para eles para incentivo, né? E para que eles continuem estudando a própria língua, isso foi o máximo pra mim.

João Vitor: Recentemente, os portais de notícias deram voz ao descaso que o anterior governo estava tendo com os Povos Yanomamis. Como esse descaso afeta também o seu trabalho? Como se sente publicando algo que respeita a cultura indígena em um momento tão delicado como esse?

MS: Sobre a questão do que tem acontecido com os Yanomami, né? Eu penso que o que tem acontecido e que os governos, é muito comum, não só os governos como as pessoas em geral, elas veem os indígenas de forma assim muito equivocada, ou é daquela forma que alguém inventou, ou que “ah, é o índio aquilo que tá lá no mato, não fala com ninguém”, e ou então vê como assim é algo que eu não quer saber porque eles estão acabando. Isso é muito grave! A Universidade Federal de Goiás tem o núcleo que trabalha com os professores indígenas, do Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Maranhão, que é muito bom trabalho que eles fazem, e eu consegui finalizar esse trabalho com grupo lá do Acre, mas a gente percebe que tem um ciúmes ou uma vontade de apagar essa cultura. Então o que tem acontecido, com os povos Yanomami é muito grave, e retrata o quanto que se não tiver pessoas do bem encontrando com eles. Isso é muito grave, porque por exemplo é muito fácil, “não vamos deixar o índio quietinho no canto dele, não vamos nem falar nada para que ele se conserve” não é possível, se não vai uma pessoa do bem vai as pessoas que têm interesse só para eles, né?! Isso em qualquer categoria: pesquisador, garimpeiro, qualquer pessoa, então vai muito do que que é, qual é o Projeto? Qual é o plano? O que você quer fazer, né? Então você vai em busca de tirar proveito ou contribuir, né? E pode ser meio a meio, porque por exemplo, eu tenho muito interesse de conhecer a estrutura das línguas. Eu sempre estudei outras línguas e a indígena em particular é o que eu mais gosto.
E essa que eu tente que esse tempo todo, tô sempre estudando, eu lucrei com isso. E acho que essa devolução entrega desse material para eles representa muito. Então, quanto a essa questão dos povos Yanomami, o descaso que tem com todos, eu acho que se tem alguém pesquisando considerando esse povo, já é uma uma ajuda grande, porque aí você pode denunciar, você pode fazer com que as pessoas não destrate, não destrua Cultura, né? Então o que tem acontecido com os Yanomami, esse descaso não afeta meu trabalho porque o meu trabalho é com eles e é contínuo. Então eu só percebo que não contato com pessoas que querem o bem deles, dificulta, porque chega outros exploradores que vão fazer uso ruim do contato, com exploração, que eu comentei, tanto questão de destruição da cultura. Por exemplo um comportamentos de questão de bebida, questão de prostituição, então essas explorações, então se tiver pessoas do bem seja de que natureza for religioso ou antropólogo ou linguista, né? Que tiver contato com esses grupos. Eu acho que só tem a a ganhar enquanto gente e o grupo também se sente mais fortalecido, porque tem um canal para denunciar, mais seguro.

João Vitor: Sendo uma professora que está em contato, pesquisando e trabalhando com indígenas, como se sente com toda essa situação dos povos Yanomami? Observa que isso afeta os outros povos?

MS: Vendo a questão do contato, a pesquisa e trabalhar com línguas indígenas, com os povos indígenas. Os Yanomamis, no meu entender, teriam que ter pesquisadores brasileiros trabalhando com esse pessoal, trabalhando no sentido de estar de parceria, né? Não é ir coletar dado e sumir, não, é estar junto. Trabalhando direcionando, por exemplo, a questão da língua, dos hábitos, costumes, de forma que eles não ficassem, tão assim, expostos aos outros, as outras pessoas. E tem uma uma questão muito interessante quando você fala que eu sou uma professora, que entrou em contato e trabalhando os indígenas, no Brasil, ainda é muito pouco valorizado e os recursos são muito poucos, por exemplo, é pra passagem fica caro para você ir, as despesas com a comida, tudo que você vai fazer com como pesquisadora é muito dispendioso e acaba não atraindo outros estudantes, né? Então o papel de um professor pesquisador que trabalha com com a questão indígena é fazer com que mais pessoas envolvam pra contribuir para o reforço e a autoestima indígena, né? Tem um projeto de extensão que eu desenvolvo desde 1997, ele chama “o índio e a sociedade não índia” que hoje eu retomo o nome que que seria mais adequado, né? Considerando as mudanças do que significa as palavras hoje, eu entendo que o projeto deveria chamar “O indígena e a sociedade não indígena”. Então esse projeto que eu vou realizar agora em agosto em séries, né? Já fiz essa esse trabalho em Rubiataba, Jardim Paulista, Estrela do Norte, Morro de Campo e outros lugares, né? E é para falar sobre como é que é o índio hoje na sociedade para a escola pública com isso aqui, eu acho que é a contribuição maior que pode se dar é dizer para os alunos estudantes de escola pública e de primeiro e segundo grau e dizer quem são esses indígenas, né? Então facilita mais esse olhar porque hoje são estudantes, amanhã pode se tornar um presidente da república, pode ser um vereador na cidade, pode ser um prefeito, e tudo isso então tem que começar a plantar onde estão no início, para ensinar os filhos e os pais, né? Esse projeto ele envolve toda a comunidade da criança e do adulto, dos estudantes e também da cidade. Hidrolina foi feito também esse projeto, então, é o que eu penso que é a contribuição que pode ser feita, né? Para que não deixamos que essas coisas aconteçam, como aconteceu com Yanomami toda essa aberração e silêncio, como é que deixou chegar nessa proporção?! Então tudo isso é uma falha de nós pesquisadores e de nós brasileiros de não estarmos atentos à questão dos brasileiros indígenas, né?
É isso.

João Vitor: Para finalizar, já está produzindo algum futuro projeto com relação à cultura indígena?

MS: A questão de projeto futuro que na verdade é uma continuidade sobre a cultura indígena, tem um projeto que eu tô fazendo agora chama que é multilíngue, que é colocar essa língua Noke Koi com tradução em inglês, francês, italiano, espanhol, japonês, libras e português, né? Para que eles tenham acesso a outras línguas para reconhecer o quanto que eles são importantes, que a língua deles tem um valor impar, e que ela pode falar de tudo, não é inferior ao inglês ou francês ao português, nenhuma dessas. Então esse é um projeto que já tá seguindo paralelo ao livro e esse outro que é do projeto de extensão. Finaliza que vai para as escolas dizer quem é o índio, passa filme, vídeos, tem palestras e tem, também, objetos e materiais indígenas para eles, para as crianças e os estudantes verem e o o propósito é eles escreverem quem são os indígenas depois do evento. Aí tem um livro que eu tô finalizando que é sobre quem quem são os indígenas no olhar dos não indígena, e os contos que passa por todas as culturas tanto africana, indígena, portuguesa de todas as culturas que vieram para o Brasil, e também, a do indígena que está e sempre esteve aqui no Brasil. Então esse é algum dos trabalhos que são futuro do tipo para publicar, para terminar até o final do ano, e é isso. O dicionário vai demorar um pouco mais mas é isso, obrigada.

3 thoughts on “‘Eu sempre estudei outras línguas e a indígena em particular é a que eu mais gosto’: Doutora em Linguística publica dicionário da língua Noke Koi”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *