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No 1º semestre de 2023, o Brasil já contava com 722 casos de feminicídio, maior número registrado desde o ano de 2019. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cujo levantamento aponta o aumento de 2,6% dos casos em relação ao ano anterior, com 704 casos contabilizados no mesmo período.
Ainda segundo o levantamento, o aumento dos casos de feminicídios foi causado pela região Sudeste, única região do país com aumento de registros do crime no primeiro semestre do ano. O aumento foi de 16,2%, enquanto em outras regiões houve uma diminuição percentual significativa: a região Nordeste apresentou uma queda de 5,6% em relação aos dados do ano anterior, enquanto a região Norte apresentou a diminuição de 2,8% no número de casos.
Apesar de leis e mecanismos que protegem as mulheres de agressões no Brasil, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, os números de casos de violência contra a mulher continuam consistentes no cenário social brasileiro.
Para a mestra em Sociologia Jully Anne, pesquisadora nas áreas de gênero e combate às opressões, a continuidade da violência contra a mulher é permitida pelas relações de poder relacionadas ao gênero e como este é observado na sociedade.
“É a partir desse aparato (gênero) que o dimorfismo sexual estabelece as relações de poder de forma hierárquica. A partir de uma construção social, o gênero estabelece que determinados corpos devem valorizar determinadas emoções, apesar de todas as emoções serem frutos da natureza humana. O corpo masculino é educado para a virilidade, para o provimento, para a liberdade e, no momento que esse corpo for agressivo, isso não vai causar espanto. Já o corpo feminino, aquele observado socialmente como ideal feminino, se demonstrar alguma agressividade, será repreendido pela sociedade, pois não tem a mesma liberdade de agir diante de uma emoção de fúria, por exemplo”, declara.
Dia 25 de novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Imagem: Flickr
A pesquisadora também aponta que as políticas públicas relacionadas à violência contra a mulher são sempre reativas, já que não é possível mudar as estruturas que condicionam as relações de poder e a forma como o poder transita na sociedade.
Outro fator muito importante para que esse cenário seja possível é o engendramento da submissão feminina ao longo da história do país. Para a socióloga, durante as décadas de 70 e 80 no Brasil, havia uma concepção de família e casamento em que o pai era responsável por prover, cuidar, alimentar e manter o disciplinamento de suas filhas. Apesar disso, a educação era fornecida pelas mães, o que, para Jully Anne, é um dos fatores de maior controvérsia dentro do patriarcado.
“As mulheres, durante muito tempo, educaram suas filhas para serem submissas aos homens, porque também foram educadas dessa maneira. Além disso, o fundamentalismo religioso também era muito mais profundo. Não havia o questionamento a dogmas e outras questões vinculadas à educação cristã”.
“Nesse cenário, quando as denúncias chegavam às autoridades responsáveis pelos casos de violência, a polícia enxergava a situação como um questão de disciplinamento da mulher, e não levava o caso adiante. Nos casos em que a agressão culminava na morte da mulher, o caso ainda passaria pela justiça, que ponderava a respeito da questão de honra, se a vítima havia sido uma boa dona de casa e uma esposa fiel”.
A entrevistada ressalta que, nessa época, a culpabilidade da vítima era muito mais presente que atualmente.
Para Jully Anne, a luta dos movimentos feministas contribuíram para a criação de delegacias com atendimento especializado às mulheres, mas essa conquista também foi possibilitada pelo meio acadêmico, principalmente a partir da produção de artigos que faziam uma observação científica da necessidade de mudanças. Ela ainda destaca que a criação institucional de espaços especializados no acolhimento das vítimas só ocorreu após situações de violência muito drásticas e muitos casos de feminicídio.
A Lei Maria da Penha, por exemplo, é um exemplo de como a criação de medidas protetivas às vítimas de violência só ocorreu após uma série de violências e crimes contra mulheres. A lei, de agosto de 2006, foi criada para estabelecer mecanismos que coibissem a violência doméstica e familiar contra a mulher, e foi nomeada em homenagem à enfermeira Maria da Penha Maia Fernandes, agredida pelo marido durante seis anos. A enfermeira sofreu tentativa de assassinato duas vezes pelo cônjuge: a primeira com arma de fogo, deixando-a paraplégica e, a segunda, por eletrocussão e afogamento.
Além da Lei Maria da Penha, existe a Lei do Feminicídio, que estabelece que o assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima é um homicídio qualificado e se classifica como crime hediondo, com penas de 12 a 30 anos.
A entrevistada destaca que o Poder Judiciário brasileiro reconheceu, tardiamente, que a morte de mulheres trans se encaixa como transfeminicídio.
“Isso (o reconhecimento da morte de mulheres trans como transfeminicídio) já estava nas diretrizes, já era pra estar acontecendo. Porém, devido a uma estrutura preconceituosa e intolerante, esses crimes estavam sendo reconhecidos como homicídios”.
A socióloga, que também participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Criminalidade e Violência (NECRIVI), da UFG, ressalta a fragilidade da lei do feminicídio:
“A lei do feminicídio ainda é uma lei precária. Ela é reconhecida como uma lei punitivista, porque não prevê mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para a requalificação dos agressores. Eles não passam pelo ambiente de reflexão psicossocial, que é muito importante. Afinal de contas, é necessário, além de punir, fazê-los refletir sobre as motivações desse ato. É necessário conseguir dialogar com esses homens em relação à questão de gênero”, ressalta.
A fragilidade da lei é perceptível na comparação de dados relacionados ao feminicídio no Brasil, que demonstram um aumento de 2,6% de casos em 2023 em relação ao ano anterior, conforme os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, outras formas de violência contra a mulher crescem no país. Segundo levantamentos do mesmo órgão, foram registrados mais de 34 mil casos de estupro durante o primeiro semestre de 2023, um aumento de 14,9% em comparação ao ano anterior.
Apesar do cenário negativo em relação ao combate e prevenção de violência contra a mulher, a socióloga Jully Anne destaca que leis recentes podem trazer maior representatividade política feminina e, portanto, maior foco para a questão.
“Um marco muito importante e também muito atual é a lei de combate à violência política de gênero. Ela é importante porque, quanto mais mulheres comprometidas com o fim da violência, mais chances temos de modificar esse quadro. A violência política de gênero é uma das motivações para que as mulheres saiam do ramo da política, desde o ambiente doméstico às mulheres que são colocadas no pleito de maneira meramente figurativa. Essa lei começou a ganhar destaque após a morte da Marielle Franco e, em 2021, foi finalmente sancionada. É necessário que mulheres comprometidas com a luta ocupem espaços de tomada de decisão e de poder”.
A lei foi sancionada em 4 de agosto 2021, e estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher durante as eleições e no exercício de direitos políticos.