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Na introdução do livro da Constituição Federal de 1988 a mensagem inicial é de que os representantes do povo brasileiro, foram reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para a formação de um estado democrático, que asseguraria o “exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.”

Foto: Reprodução da Constituição Federal de 1988 (Introdução)

Quem abre o livro e lê essa introdução certamente não reconhece todos estes adjetivos no dia a dia, afinal, a maioria deles são direitos teóricos, ou seja, na prática os brasileiros e brasileiras além de não viverem essa realidade, viram estatísticas, um espécie de número para o estado. Cada qual com os seus direitos e deveres assegurados no livro supremo que rege uma república, mas se todos estes itens não estão presentes no dia a dia da sociedade, onde estão?

O que são Direitos Civis?

Os Direitos Civis são um conjunto de leis em que os governos asseguram o cumprimento aos cidadãos, isto é, direito ao voto, quem pode e não pode comprar uma determinada propriedade e até mesmo o cidadão que é ou não capacitado para dirigir um veículo. Direito de ir e vir. O direito civil está ligado a liberdade individual de cada pessoa, garantido pelo artgo 5° da Constituição:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Nesta reportagem você vai conhecer histórias de lutas de diversas populações que são conhecidas na sociedade pelo termo “minoria“, mas que na prática não é assim. São pessoas comuns, mas que por conta de serem quem são, cotidianamente são invisibilizadas por um preconceito estrutural feito exatamente para delimitar quem é quem e até onde você pode ir. Mas de onde surgiu tanto preconceito, por que as coisas são como são?

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a população brasileira é divida em três raças, são elas: branca, preta e parda, mas qual o motivo de diferenciar as pessoas? Isso pode acarretar em afastamento umas das outras ou contribuir para uma reparação histórica de fatos que atingiram pessoas pretas tratadas como mercadorias, para a função de escravos?

Por que ainda hoje, em pleno século XXI ainda acontecem episódios de racismo, injúria racial, xenofobobia, homofobia e machismo?

De onde vem este “tal preconceito”?

A autora Leila Leite Hernandez, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontíficia Universidade Católica), mestre em Ciência Política pela USP (Universidade de São Paulo) e doutora em Ciência Política pela PUC-SP escreveu em sua obra “A África na sala da aula, visita à história contemporânea” como e o porque ainda hoje o preconceito contra as pessoas ainda é uma prática comum e social. Na obra, ela conta como tudo começou, desde o olhar imperial e a invenção da África para o mundo.

No livro de 677 páginas, a escritora apresenta uma história detalhada, com explicações profundas do porquê de tudo ser como é hoje. Os povos se veem dominados pela europa descobridora, dona dos sete mares. Ali nascia a civilização, mas que conceito de civilização é este que para crescer e se apropriar de conhecimento é necessário escravizar, estuprar e matar? Durante estas longas páginas uma viagem à África de 1500 é realizada, coincidentemente ou não o mesmo período de descobrimento da América, será mesmo descobrimento ou invasão.

Caro leitor, o intuito desta reportagem é levar você a questionamentos que fogem do descontrole do dia a dia, da rapidez com que circulam as informações. Neste texto você conhecerá histórias que se mantém vivas graças a uma luta de combate diário contra o preconceito racial e de gênero. Você descobrirá ainda passos de como fugir de pensamentos simplistas e enraizados propositalmente por uma estrutura social carregada de preconceitos e julgamentos.

“Eu quero ser assim para sempre”, diz Isys Marine

Isys Marine – Reprodução proibida (Arquivo pessoal)

Isys Marine Parreira, de 27 anos, moradora da cidade de Uruana-GO. Se formou em História pela UEG (Universidade Estadual de Goiás), trabalha como maquiadora e designer de sobrancelhas. Aos 17 anos se assumiu gay para a família, mas foi em outra cidade que ela descobriu o que realmente amava ser e fazer.

“Me descobri uma mulher trans quando me mudei para Goiânia. Comecei a trabalhar em uma empresa de varejo com maquiagem e perfumaria. Todos os dias eu fazia maquiagem e me sentia muito feliz com a minha imagem feminina. Neste mesmo lugar conheci um amigo que fazia Drag Queen, então ele me montou pela primeira vez e fiquei apaixonada pela arte Drag.”

A transição de Drag Queen para Mulher Trans

Isys conta que se montou por três anos, a partir daí o nome de Isaac Parreira se tornou Isys Marine, uma mulher trans que inicialmente queria se descobrir, se aventurar por um novo universo a qual sempre teve curiosidade. Ela conta que quando estava montada, sempre ia para as casas noturnas na cidade de Goiânia.  O termo “se montar” refere-se a prática de se produzir com peças do vestuário feminino, como por exemplo, maquiagens, perucas, sapatos de salto alto, dentre outros.

 “Eu até me arrisquei em alguns concursos como Drag queen, até que em uma bela noite no banheiro da boate, me olhei no espelho e pensei comigo, eu quero ser assim pra sempre”.

Foto – Arquivo pessoal de Isys Marine

Ela conta que começou a terapia hormonal logo no início da transição. Diz que o começo não foi nada fácil, mas se descobriu de verdade ao se ver como mulher. A família não recebeu essa notícia tão bem, Isys enfrentou uma realidade de muitas mulheres trans no Brasil.

“Eu tinha muito receio e medo, pois, a reação de alguns era de deboche, como se eu fosse uma palhaça.  Tive amigos maravilhosos que me apoiaram e me apoiam até hoje e vibram comigo a cada evolução tanto mental e físico.”

Preconceito

Isys conta que um dos momentos em que ela mais ficou  constrangida e triste até hoje foi quando ao ser contratada por uma empresa de perfumaria e cosméticos, quiseram entregar a ela o uniforme masculino.

“No dia da entrega dos uniformes a moça responsável não quis me entregar o uniforme feminino até que um gerente maravilhoso lutou até que eu me sentisse bem na loja do que jeito em que eu me via, sentia e agia.”

A jovem de 27 anos ressalta que tirando este episódio, sempre foi bem aceita pelos colegas e clientes que frequentavam a loja. Reconhecida pelo seu dom de maquiar as pessoas, deixá-las mais lindas. Em casa, os pais de Isys respeitaram a transição, mas não aceitavam.  A única que a apoiava em tudo era a avó que hoje não está mais aqui. Dona Juvercina Rodrigues, de 69 anos morreu no dia 19 de Abril deste ano.  

Juvercina, mais conhecida como Fia e ao lado Isys Marine (Foto: Reprodução Proibida)

 “Ela me dava roupas, maquiagens, ela era incrível. E isso me deixava muito feliz, por que sei que muitas meninas trans iguais a mim nem sempre tem a mesma  sorte que eu tive.”

Feminicídio em Aparecida de Goiânia

De acordo com o Código Penal, o crime de feminicídio é praticado em razão do gênero da vítima, isto é contra a mulher por razões da condição de ser do sexo feminino, quando há o menosprezo ou discriminação à condição da vítima em ser mulher.

Foto: Polícia Civil de Goiás

Bianca Machado Rodrigues, 38 anos desapareceu na manhã de um domingo (22/05) quando saiu de casa para ir encontrar um amigo e ex-namorado na Vila Brasília em Aparecida de Goiânia. Desde então não foi mais vista pela família. Bianca era uma mulher trans que trabalhava em um salão de beleza em Aparecida há cerca de três anos. Deixou para trás, três filhas adotivas, a irmã e a mãe O corpo de Bianca foi encontrado esquartejado, parte do corpo estava debaixo de um sofá na casa do ex-namorado e o restante em uma mata fechada.

Foto cedida pela família de Bianca Machado – Reprodução Proibida

De acordo com as investigações da polícia, o principal suspeito, “amigo” e ex-namorado de Bianca confessou o crime. Ele foi preso na quarta-feira (25) e mostrou aos policiais onde as partes do corpo estavam. A motivação do crime ainda não foi divulgada.

Foto: Polícia Civil do Estado de Goiás

Racismo e Homofobia em Dobro

Neto Rodrugues – Reprodução proibida (Arquivo pessoal)

Neto Rodrigues, 23 anos, o que era para ser mais uma venda da loja de tênis em que ele trabalhava na cidade de Anápolis acabou se tornando mais um caso de racismo que entrou para as estatísticas no estado. O fato aconteceu quando Neto estava em uma conversa via aplicativo de mensagens com um cliente, quando em determinado momento da conversa o cliente diz que:

“Esse negão aí. Cabelo de vassoura de limpar casa. Ele é até bonitão, mais queima”.

O modelo/vendedor e ex-mister teen Anápolis conta que acredita que ele (autor das ofensas) estivesse falando com outra pessoa, mas comentando sobre a conversa com ele. Em seguida, o homem apagou as mensagens, mas Neto já havia printado as telas das conversas e em seguida às levou até a delegacia de polícia mais próxima. O que ele não esperava (sic) era que no local em que deveria ser ouvido, acolhido e orientado, seria mais uma vez local para preconceito. Ao chegar na delegacia, Neto conta que o delegado de plantão mostrou pouco interesse em relação a denúncia informada.

“Parecia que eles não estavam dando muito importância para o caso, tem informação que não está muito correta no boletim, mesmo eu explicando a história. Cobraram que eu descobrisse e informasse o endereço do cliente, sendo que tudo aconteceu pela internet. Não tive apoio da polícia”, afirma.

Em nota, a Polícia Civil se defendeu das alegações da vítima, informando que não houve declarações dos policiais, no ato do atendimento, de que o caso a ser registrado “não era grande coisa”. Além disso, a corporação informa que os servidores recebem treinamento para atendimento qualificado às vítimas vulneráveis. Em resumo, houve a negativa por parte da autoridade, o que motivou Neto a ingressar por uma ação na justiça contra o Estado.

Leia a nota na íntegra da Polícia Civil diante da alegação de Neto:

A Polícia Civil de Goiás informa que os servidores recebem treinamento para atendimento qualificado às vítimas vulneráveis. O procedimento foi devidamente registrado e algumas diligências, já realizadas pela Delegacia de Polícia de Anápolis. A Polícia Civil esclarece ainda que não houve declarações dos policiais, no ato do atendimento, de que o caso a ser registrado “não era grande coisa”. A PCGO tem trabalhado com afinco no combate aos crimes de intolerância e homofobia em Goiás, tanto que, em razão da atenção que dá as infrações penais desta seara, criou neste ano uma unidade especializada – o Grupo Especializado no Atendimento às Vítimas de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Geacri).

Racismo Estrutural, o que é e como combater?

Você já deve ter ouvido este termo, mas se ainda não compreendeu, confira as dicas do professor e mestre em história Fernando Carvalho que falou com exclusividade a reportagem do Lab Notícias.

O Racismo Estrutural é uma prática mais comum do que parece e por isso, deve ser combatido o tempo todo.

Mulheres na Sociedade

A Advogada especialista em Direito Penal, Criminologia Crítica e feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Kelly Cristina conta que o sentimento de superioridade dos homens em relação às mulheres está ligado ao fato de se apropriarem de algo que não é de direito deles, decidir sobre a vida do outro.

“Esse sentimento de superioridade masculina está fundamentado na relação de apropriação do corpo da mulher, que tem origens remotas. Essa apropriação física das mulheres, assim como a exploração e a dominação, tem uma base material constituída a partir da divisão sexual e racial do trabalho.”

Advogada e feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (Foto: Arquivo pessoal, reprodução proibida)

A advogada explica que a apropriação do corpo das mulheres pelos homens se expressa pela redução das mesmas ao estado de um objeto material, “de coisa, de propriedade masculina”. Para ela, essa realidade da exposição da mulher como símbolo sexual representa uma ameaça e pode ser notada pelos casos de feminicídios, traduzidos em números pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás. De acordo com o órgão, entre 2020 e 2021, 98 mulheres perderam a vida em decorrência de companheiros agressivos.

O sentimento de posse e superioridade tem origem nas relações de poder entre os sexos. Expressa o essencial na relação entre um homem e uma mulher, que é o “direito” ao “uso físico sexual” da mulher, isso na concepção de homens machistas.

A especialista destaca ainda que o machismo estrural e enraizado nos homens e até mesmo em algumas mulheres fazem com que a mulher seja sempre inferiorizada diante das situaçãoes do dia a dia. O homem se sente dono da mulher. No começo, pode se mostrar como uma pessoa boa, mas com o passar do tempo, se torna agressivo. A advogada afirma que existe uma ideologia estruturada por séculos de dominação, que autoriza e determina que a mulher tem uma “obrigação sexual” e de subordinação ao homem.
A superioridade dos homens em relação às mulheres pode ser vista no dia a dia, como casos de ameaças de divulgação de imagens íntimas, como aconteceu com a atriz da rede Globo Carolina Dieckmam, a qual o caso foi utilizado para criar uma legislação que protegesse a imagem das mulheres em relação a divulgação de fotos sem o consentimento das mesmas. Sobre essa divulgação de imagens sem o consentimento das vítimas, a especialista em direito Kelly Cristina ressalta que:

“Em 2018 foi acrescentado ao Código Penal o artigo 218-C que prevê punição de 1 (um) a 5 (cinco) anos para quem ‘’oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar” “fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual , que contenha cena de estupro ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vitima, cena de sexo, nudez ou pornografia.”

Apesar de existir legislação para punir quem comete este tipo de crime, muitos homens o cometem, mas não são condenados. Há uma diferença entre a lei prevista no Código Penal, da lei que é aplicada na prática. Kelly conta que, quando uma lei chega a ser positiva em benefício de mulheres, povos indígenas, povo negro, população LGBTQI+, ou seja, das minorias políticas, um longo caminho de lutas, com muita resiliência já foi percorrido. Para ela, desprezar estas conquistas seria um contrassenso. Ela defende que, apesar de muitas vezes a lei não ser aplicada na prática, a publicação de uma lei deve ser comemorada pela população, afinal de contas, é o início para atingir o objetivo principal, que é coibir este tipo de crime.

Questionada sobre a aplicação da lei em relação ao ambiente digital, tema desta reportagem, a advogada explica que as legislações são importantes porque adaptam o código penal para o momento atual, onde o uso das tecnologias potencializam conteúdos discriminatórios que lesionam direitos humanos fundamentais e a dignidade das mulheres. Para ela, é preciso ainda mais a vigilância deste tipo de conteúdo. Kelly conta que estes padrões são mecanismos organizados para a escravidão emocional não apenas das mulheres.

“Essa hiper-sexualização dos corpos femininos é decorrente da lógica patriarcal-capitalista imposta secularmente, que coloca a mulher como propriedade e objeto de consumo e para consumo. Mas não se trata de sexualidade ou mesmo de sexo ou de desejo. Trata-se de controle, de poder. Controle dos corpos que devem ser brancos, magros, sarados, jovens, sempre potentes… mas também manipulação das emoções das pessoas. Assim, pra mulher ser aceita, ser querida, ser amada, ter um bom parceiro, ela precisa ter este ou aquele corpo e consumir este ou aquele produto que o mercado quer vender.” afirma Kelly.

Ao finalizar a entrevista com a advogada feminista, ela deixa um recado e um alerta para todos da sociedade:

“Todas as mulheres do mundo já passaram por episódios de machismo, mesmo as mulheres da alta burguesia, afinal o patriarcado é universal. Evidentemente que não há comparação entre o machismo que sofreu a princesa Diane com o que sofre as mulheres indígenas do povo Yanomami, que desde a colonização vem sofrendo o estupro de seu corpo e de seu território. Pessoalmente encontrei na luta coletiva um lugar de acolhimento. O movimento feminista é, não somente para mim, um lugar de cuidado, amparo e de muito crescimento. Perceber que as injustiças que me afetaram e me afetam na individualidade, também atingem mulheres com histórias de vida e condições diferentes das minhas, muito contribuiu para eu tomar maior consciência dos mecanismos de dominação e exploração que nos subjugam a todas.”

Conheça a iniciativa da Articulação de Mulheres Brasileiras, que é um movimento feminista, antirracista, anticapitalista, antipatriarcal, e não partidário.

A cantora norte americana Beyonce Knowles, de 40 anos lançou uma música escrita para combater o preconceito contra a cor da pele de mulheres e homens negros por todo o mundo. O vídeo no YouTube já atingiu a marca de 52.070,984 visualizações e mais de 1 milhão de curtidas. A cantora vem ganhando cada vez mais destaque na mídia com músicas dedicadas a combater o racismo.

Cancão feita em parceria com Blue Ivy, SAINt JHN & WizKiD

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