Capoeira angola é reencontrar a cultura afro-brasileira

O jogo faz os participantes se conectarem aos valores da ancestralidade
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JESSICA VALERIO

 Aula de capoeira angola no Sertão Negrão. Foto: Jayme Leno.

A poucos quilômetros do campus Samambaia – UFG, a paisagem muda completamente. É possível ver o mundo como deveria ser: mais verde, com os sons dos pássaros sobressaindo ao de carros. Neste lugar calmo, encontra-se o Sertão Negro, um ateliê-escola voltado para a cultura afro-brasileira, que proporciona aulas gratuitas de capoeira angola, com o Mestre Guaraná.

Antes mesmo de virar a esquina, já é possível ouvir os instrumentos. O berimbau, pandeiro, atabaque, agogô e o reco-reco são essenciais para o jogo, em uma choupana decorada, preparada para receber os alunos, nas segundas, quartas e sextas, das 18h às 20h. No primeiro horário, são os treinos, em que os participantes aprendem os movimentos para jogar na roda. Cada um vai no seu ritmo, recebendo as orientações do Mestre Guaraná, que não hesita em ajudar os iniciantes, que também recebem apoio dos mais experientes. 

No segundo momento da aula, cada jogador é convidado para tocar um instrumento, mesmo que não saiba, aprende lá na hora mesmo. O importante é participar. O canto, as palmas e a harmonia de todos os instrumentos fortalecem os movimentos de cada jogador na roda. Sem o conjunto desses elementos, não é capoeira. A roda toma forma, e a dupla de capoeiristas jogam, ambos não têm a pretensão de ganhar. Existe apenas dentro de si a vontade de descontrair entre amigos e ressaltar a conexão com a ancestralidade. Aqui, não se luta capoeira. Se joga capoeira. Se vive a capoeira.

Mestre Guaraná

De sorriso fácil e voz tranquila, Carlos Alberto, o Mestre Guaraná no universo da capoeira, teve seu primeiro contato com a prática aos 18 anos, no espaço cultural da UFG, com o Mestre Zumbi, e desde então, este é o seu ofício há quase 40 anos.

 É nascido na Ilha do Bananal, na época, Goiás, e que atualmente pertence ao território do Tocantins. A família do sul do Maranhão resolveu vir a Goiânia, e sempre o incentivou a praticar capoeira. “Eu sou muito grato por tudo que a capoeira me proporciona até hoje. Os caminhos que ela me abriu, o significado e a importância dela para minha vida.”, afirma.

Por meio da capoeira, Mestre Guaraná se conecta à sua ancestralidade. Foto: Jayme Leno.

No lugar em que iniciou a prática com o Mestre Zumbi, se tinha a tradição de atribuir codinomes aos alunos, algo histórico na capoeira. Mestre Zumbi achou pertinente chamá-lo de Guaraná, pela relação com a ancestralidade indígena e suas origens.

Além das aulas no Sertão Negro,  Mestre Guaraná coordena o grupo Calunga de Capoeira Angola há 25 anos, com o objetivo de ensinar os elementos característicos da prática, formando alunos multiplicadores dessa tradição, visando sobretudo a ligação ancestral e o envolvimento de toda essa cultura e significado que ela representa. “A concepção de capoeira no meu entendimento é que ela é um jogo complexo que envolve luta, brincadeiras, musicalidade, ancestralidade, filosofia, malícia. Então tudo isso se encontra no universo da capoeira”, destaca.

Capoeira angola

A capoeira é uma manifestação cultural, que se desenvolveu com os escravizados no Brasil, portanto, é carregada de ancestralidade africana. Segundo o Portal Capoeira,  origem do seu nome ainda é debatida, pois existem as seguintes possibilidades: Origem do tupi-guarani,‘caa -puera’que significa mato ralo, lugar onde a capoeira era praticada. Além disso, a capoeira eram os cestos e varas carregadas pelos escravos, com aves e galinhas, que em certos momentos jogavam capoeira. Outro significado para a palavra é a ave chamada capoeira ou Eru, encontrada em alguns estados brasileiros.

Após a vertente de capoeira regional baiana, criada pelo Mestre Bimba, surgiu a capoeira angola. O responsável pela difusão da capoeira angola foi Vicente Pastinha, conhecido como Mestre Pastinha, que resgatou os traços da tradição capoeira original, iniciada com os escravizados. Em 1941, ele fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), em Salvador.

A vertente capoeira angola é um estilo mais lento, com a ginga solta, movimentos flexíveis e com mais variações. O adversário, utiliza apenas golpes com a cabeça, joelho e cotovelos e golpes desequilibrantes, como bandas, rasteiras e tesouras.

Na roda de capoeira angola, os instrumentos como berimbau, pandeiro, atabaque, agogô e o reco-reco devem estar presentes. A capoeira foi considerada crime previsto no código penal brasileiro de 1889 até 1937, com até 6 meses de prisão. No ano de 2008 o IPHAN reconheceu a roda de capoeira como bem cultural. Já em 2014, a UNESCO aprova a roda de capoeira como Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade, símbolo da cultura brasileira.

Ancestralidade

Segundo MS. Luis Vitor Castro Júnior (2014), a ancestralidade é tocante aos antepassados, os que passaram e aos presentes, portanto, a relação do capoeirista com seus antepassados é íntima, principalmente durante a roda de capoeira, porque o ancestral é presente no passado e no hoje. Além disso, existe o reconhecimento do antepassado por todo trabalho desenvolvido anteriormente. As reverências aos ancestrais estão nas músicas, vestimentas e festivais.”O morto representa um símbolo mítico poético de conhecimento, que serve como forma de revigorar o passado em uma constante dinâmica de fidedignidade dos conhecimentos adquiridos pelo seu ancestral.”( CASTRO JÚNIOR, p.149, 2004).
*O conceito de ancestralidade é bastante amplo. Diversos autores pontuam perspectivas diferentes a respeito do tema. Conceito presente na tese de mestrado de MS. Luis Vitor Castro Júnior, intitulada “CAPOEIRA ANGOLA: OLHARES E TOQUES CRUZADOS ENTRE HISTORICIDADE E ANCESTRALIDADE”, publicada na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, em 2014.

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