‘A juventude desconhece essas doenças, não associando a erradicação e o controle com a vacinação’: especialista em saúde sobre a baixa adesão à imunização

Polyana Cristina Vilela Braga trabalha com vacinação há mais de uma década e disserta sobre questões relacionadas à retomada das coberturas vacinais
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De acordo com o Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi formulado, em 1973, por determinação do  Ministério da Saúde. Objetivando a unificação, maior abrangência e um acompanhamento qualificado das ações de vacinação, sua elaboração foi realizada por técnicos do Departamento Nacional de Profilaxia e Controle de Doenças (Ministério da Saúde) e da Central de Medicamentos (CEME – Presidência da República). Institucionalizado pelo Decreto nº 78.231 de 12 de agosto de 1976, o PNI iniciou em 1980 sua primeira Campanha Nacional de Vacinação, contra a poliomielite.

Após consecutivos anos de queda, a adesão à vacinação obteve um aumento no ano de 2022, de acordo com a pesquisa Observa Infância, parceria entre a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e a Unifase (Faculdade de Medicina de Petrópolis). No entanto, apesar do crescimento, no que tange à primeira infância, esses índices ainda estão abaixo do recomendado pelo Ministério da Saúde (dados da Sociedade Goiana de Pediatria).

Para explicar a ocorrência desse fenômeno e apontar medidas práticas para sua superação na instância municipal, o LabNotícias (LN) entrevistou Polyana Cristina Vilela Braga, especialista em saúde na Gerência de Imunização da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia.

Polyana Braga atua nas área de saúde coletiva, imunização e vigilância epidemiológica (Foto: Letícia Lourencetti/LabNotícias)
Polyana Braga atua nas área de saúde coletiva, imunização e vigilância epidemiológica
(Foto: Letícia Lourencetti/LabNotícias)

Letícia Lourencetti (LN): Bom, Polyana, eu vou pedir para você começar se apresentando. 

Polyana: Meu nome é Polyana Cristina Vilela Braga, sou enfermeira graduada pela UFG, fiz mestrado na UFG e atualmente estou finalizando o doutorado no Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP-UFG). Trabalho na Secretaria Municipal de Saúde [de Goiânia], e fui gerente de imunização por cinco anos, entreguei o cargo no início deste ano. Há 12 anos eu trabalho com vacinas.

LN: Começo citando um fato que aconteceu em abril deste ano, que foi a entrega do relatório Situação Mundial da Infância: para cada criança, vacinação, do UNICEF/OPAS, próximo à Semana de Vacinação nas Américas. Nesse relatório, um dos dados apresentados foi a ausência da imunização de 1,6 milhão de crianças, que não receberam vacinas como a DTP [tríplice bacteriana] e a Poliomielite. Então, a não adesão à imunização não é algo observado apenas aqui em Goiânia ou em Goiás, é um fenômeno que vem acontecendo no mundo inteiro. O que a senhora acha que tem levado a essa mudança de mentalidade da população?

Polyana: Olha, eu vejo que é multifatorial. São várias causas que têm levado a essa não adesão à vacinação, uma delas são as fake news, que eu acho que geram impactos sim, com os grupos antivacinas. Mas também a capacidade de produção e distribuição desses imunobiológicos [as vacinas] no mundo como um todo. A gente percebe isso, por exemplo, aqui no Brasil. Antigamente nós recebíamos vacinas de um ou dois laboratórios, e agora às vezes a gente trabalha com a mesma vacina de vários laboratórios diferentes. Então, justamente pela capacidade de produção e distribuição, pode ser que em um momento ou outro tenha uma dificuldade de disponibilização desses imunobiológicos. Eu penso também que medo dos eventos adversos, uma “infodemia”, que tem sido falado ultimamente,  relacionada a vacina. Eu acredito que algumas dessas informações [falsas] tragam inseguranças para os pais. A gente também vê, no mundo como um todo, uma alteração na questão de acesso ao serviço de saúde graças a um novo formato de trabalho. Antigamente a mulher ficava em casa, cuidando dos filhos e acaba que tinha mais tempo de levar esses filhos para vacinar. Já hoje, os filhos ficam na escola em período integral, ou senão com babá, com os avós, em creches… E aí mudou um pouco essa dinâmica de cuidado com a criança e a responsabilidade da vacinação. Então eu vejo que, na verdade, são vários fatores. É um fenômeno multicausal.

LN: A respeito desse medo dos efeitos adversos citado pela senhora, quais são as principais reclamações que as pessoas têm?  Elas realmente são algo muito diferente do que já acontecia? Por que está sendo uma preocupação agora?

Polyana: Na verdade, tanto vacina quanto qualquer medicamento, qualquer fármaco, pode trazer evento adverso, efeitos colaterais. Sempre existiram as pesquisas antes da implantação de uma vacina em algum programa de vacinação. E é claro que existem os eventos [adversos] mais comuns, que inclusive são, na sua maioria, benignos. Alguns exemplos são: febre, dor no corpo, dor de cabeça e dor no local da aplicação. De fato, em toda vacina existe o risco de algum evento mais grave, o que também sempre existiu, mas isso está intimamente relacionado ao número de doses aplicadas. 

“Quando há a ocorrência de um efeito colateral raro, mas existem muitas doses sendo aplicadas, a probabilidade dele acontecer, proporcionalmente, acaba sendo maior.”  Polyana Cristina Vilela Braga, da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia

Então, na verdade, isso sempre existiu em qualquer vacina. Mesmo quando, lá no início do Programa [PNI], eram duas, três vacinas disponibilizadas, já existiam esses eventos adversos mais graves. E, realmente, nos últimos anos tem se falado mais, e aí tem gerado uma preocupação que eu vejo que não justifica muito deixar de se vacinar por medo do evento adverso. O que a gente percebe na prática, no dia a dia, são esses eventos mais comuns que são benignos, autolimitados e muitas vezes não precisam nem de nenhuma intervenção médica ou farmacológica.

LN: Em quais casos esses efeitos adversos que a senhora citou costumam acontecer mais e como as pessoas podem se atentar para que eles não aconteçam? Onde elas podem se informar seguramente a respeito disso?

Polyana: Sempre antes da aplicação de uma vacina, é necessário fazer uma triagem. Nessa etapa são levantados dados como doenças pré-existentes e alergia a algum dos componentes. E aí, quando perguntam “Você tem alergia a alguma coisa?” logo, a pessoa que sabidamente tem uma alergia vai responder. Se ela não souber, pode ser que aconteça algum evento ali por desconhecimento. Tendo algum evento adverso que contraindica a vacina, essa vacina não pode ser aplicada. Então, na própria sala de vacinação, antes da aplicação da vacina, no momento da triagem, o usuário pode se informar a respeito de quais são os componentes da vacina, para ver se tem alergia ou não.

LN: E quantas vacinas a Secretaria Municipal de Saúde oferece gratuitamente pelo SUS hoje em dia?

Polyana: As vacinas são adquiridas e distribuídas pelo Ministério da Saúde aos estados, e dos estados aos municípios. Então nós [da Secretaria Municipal de Saúde] trabalhamos somente com as vacinas do Programa Nacional de Imunizações, adquiridas pelo Ministério da Saúde, de laboratórios nacionais e internacionais. Atualmente na rotina nós temos mais de 18 imunobiológicos, além de alguns outros que são disponibilizados no Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais [CRIE], para populações específicas, como portadoras de HIV, de câncer, cardiopatias e anemia falciforme, por exemplo. Então, são mais de 24 imunobiológicos ao todo. São muitas salas de vacinas no Brasil como um todo, então realmente se trata de um quantitativo imenso de vacinas, que são adquiridas e estão disponíveis. A gente tem muitas doenças que são prevenidas pela vacinação. Tendo em vista o custo do tratamento da doença, das sequelas e mesmo sua gravidade, levando até a óbito, quando a gente vai pesar na balança, o custo-benefício dessas vacinas é enorme tanto individualmente, coletivamente, quanto para a saúde pública como um todo.

O recém reformado Centro de Saúde Esplanada dos Anicuns, em Goiânia, é apenas um dos cerca de 37.000 pontos de vacinação do Brasil
(Foto: Letícia Lourencetti/LabNotícias)

LN: No último mês de setembro, o governo de Goiás e diversos órgãos privados e públicos do estado aderiram ao Pacto Nacional Pela Consciência Vacinal, que é um projeto do Conselho Nacional do Ministério Público [CNMP]. Como esse pacto vai, de fato, entrar em ação aqui em Goiânia? 

Polyana: Esse pacto nacional é justamente para resgatar as altas coberturas vacinais. O PNI, que é o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde no Brasil, sempre foi uma referência mundial. Sempre muito técnico, trabalhando em cima de evidências científicas e transmitindo muita segurança. Nos últimos anos, como já comentamos, por diversos fatores essas coberturas vacinais decaíram. Um dos fatores, inclusive, é o sucesso do PNI. Devido ao fato de ele haver erradicado e controlado muitas doenças, a juventude desconhece essas doenças e seus riscos, não associando a erradicação e o controle com a vacinação. 

Então esse pacto visa recuperar essas altas coberturas vacinais. O Ministério da Saúde tem trabalhado em programas, em estratégias, para esse resgate. Uma dessas estratégias foi um microplanejamento, que trabalhou de forma descentralizada, de estado a estado, levantando a realidade local: as maiores dificuldades, os pontos fortes e pontos fracos, visando elaborar um planejamento para a campanha de multivacinação. A campanha deste ano aconteceu de forma descentralizada. Não foi nacional, mas regional. Inclusive, aqui em Goiás, nós acabamos recentemente, no dia 14 de outubro, essa que trabalhou, então, com esse microplanejamento. Então são várias ações que estão sendo propostas. Ações de capacitação e, principalmente, de comunicação. A gente vê que a comunicação tem sido fundamental para informar a população com notícias reais, com embasamento científico, para a população voltar a ter segurança no processo de vacinação e no Programa Nacional de Imunizações.

LN: A respeito da questão da transmissão de informações vindas direto da Secretaria Municipal de Saúde, você poderia me dizer quais veículos vocês têm a pretensão de manter o enfoque maior? Por quais plataformas as pessoas podem acessar essas informações?

Polyana: Desde a campanha de Covid-19, nós fazemos essa divulgação pelo site  e Instagram da prefeitura, através de jornais e de entrevistas. Então, nos últimos anos, desde a campanha de Covid-19, tem sido bastante procurado pela mídia mais entrevistas para falar sobre a vacinação, a importância da vacinação, justamente para conscientizar a população. 

“Na verdade, o processo de vacinação só vai melhorar se nós tivermos o engajamento de vários setores, então nós temos procurado, também, essas parcerias com o Ministério Público, com as escolas e universidades.”  Polyana Cristina Vilela Braga, da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia

Então os principais meios de comunicação seriam o televisivo e também pelas redes sociais. A gente percebe que a informação se dissemina muito fácil pelas redes sociais, Instagram, WhatsApp, e as fake news ganham uma proporção muito grande e muito rápido por esses veículos. Então as notícias boas, as good news, eu acredito que também tem que tomar o mesmo caminho.

Adesivo da campanha publicitária estadual 'Xô dodói', decorando a porta da Gerência de Imunização (Foto: Letícia Lourencetti/LabNotícias)
Adesivo da campanha publicitária estadual ‘Xô dodói’, decorando a porta da Gerência de Imunização (Foto: Letícia Lourencetti/LabNotícias)

LN: A gente falou sobre a comunicação, sobre como as pessoas podem ficar sabendo a respeito das campanhas de vacinação, mas, de fato, algo que foi pontuado inclusive no relatório da UNICEF é que a maioria das crianças, principalmente, que não têm acesso a esse imunizantes são aquelas de condição financeira reduzida, também as que vêm de periferias urbanas ou zonas rurais. Quais medidas a Secretaria Municipal de Saúde pode tomar para que essas vacinas realmente cheguem no braço de todas as pessoas? Como vocês pretendem reunir fisicamente essa população mais afastada nos pontos de vacinação?

Polyana: A questão do acesso é uma discussão ampla e bem complexa. A gente precisa fortalecer as equipes de estratégia em saúde da família na busca ativa. Nós percebemos, também, na prática, que o acesso às unidades de saúde, às salas de vacina, precisa ser ampliado. 

Retomando aquilo que a gente falou no início da entrevista, hoje as mães trabalham o dia todo e as crianças ficam em creches, escolas integrais. O horário de funcionamento da unidade de saúde é o mesmo horário que os pais estão trabalhando, então há uma dificuldade para levar essas crianças. Nós já temos em Goiânia três unidades que funcionam aos sábados e domingos, justamente para melhorar esse acesso. Existe uma portaria do Ministério da Saúde, que amplia o horário de funcionamento das unidades de saúde  e isso precisa ser colocado em prática. Foi feita a adesão, mas existem alguns entraves relacionados à logística e estrutura mesmo, para operacionalizar, de fato, essa portaria e ter os horários ampliados. Mas eu penso que esse seja esse o caminho: a ampliação dos horários; o funcionamento aos sábados e domingos; também a vacinação nas escolas, que nós temos feito e inclusive foi uma estratégia na campanha de multivacinação. 

Recentemente o governo do Estado publicou um decreto obrigando a comprovação vacinal, através de um certificado de vacinação, de todas as crianças até 18 anos de idade para matrícula e rematrícula nas instituições de ensino, tanto na rede pública quanto na rede privada. Então a gente acredita que, com essa iniciativa, a busca pelas vacinas vai melhorar, vai aumentar, e a gente vai conseguir atingir as crianças que não estão vacinadas. 

“E não é que a vacinação é obrigatória, mas com esse decreto a criança tem que, pelo menos, procurar a unidade de saúde para pegar esse certificado, se está ou não atualizado conforme a rotina estabelecida, e, se não estiver atualizado, o motivo disso. Também é uma oportunidade do profissional de saúde convencer o pai e a mãe e sanar qualquer dúvida que tenham e que seja um impeditivo da vacinação.” Polyana Cristina Vilela Braga, da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia

Unidades de saúde com vacinação aos fins de semana

Ainda de acordo com a entrevistada, a UPA Jardim América, o Ciams Urias Magalhães e o Centro Municipal de Vacinação são as três unidades de saúde com salas de vacinação abertas aos fins de semana.

LN: Por fim, sobre a volta de algumas doenças imunopreveníveis que já haviam sido erradicadas, você poderia citar alguns exemplos? Quais doenças têm preocupado os órgãos públicos e que devem, também, ser um alerta para a população?

Polyana: Podemos citar o sarampo, já que nós perdemos o certificado de erradicação do sarampo no Brasil em 2018, estamos tentando recuperar esse certificado. Nós já tivemos vários surtos e agora está como uma doença controlada, mas quando a gente fala que teve surto de sarampo, a gente imediatamente fica com medo da rubéola, porque a vacina é a mesma, é a Tríplice Viral: sarampo, caxumba e rubéola. Então tivemos alguns casos de caxumba, alguns surtos de catapora, ou varicela [como também é chamada]. Nós tivemos algumas situações preocupantes em relação à difteria, que é uma doença controlada. Também podemos citar o tétano neonatal. Mas uma que tem nos amedrontado bastante é a poliomielite, que nós não temos nenhum caso ainda, mas estamos em alerta máximo pela OMS para reintrodução do poliovírus. É o que nos preocupa mais no momento, a poliomielite.

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