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O autodiagnóstico de psicopatologias por meio de informações online não é um problema exclusivo do uso excessivo das redes sociais. Antes que o Instagram, o Twitter e o Tik Tok fizessem parte da vida da maioria dos brasileiros, já existiam testes psicológicos e de personalidade online, nos quais os usuários indicavam seus sintomas e recebiam indicações de possíveis transtornos.
Com o passar do tempo, as redes sociais se tornaram uma ferramenta importante de propagação de informações e conteúdo, além de ser um meio de divulgar serviços e atrair clientes por profissionais de diversas áreas. Isso facilitou ainda mais o processo de busca por informações a respeito de transtornos mentais na web, inclusive aquelas oferecidas por pessoas que não são profissionais ou habilitadas para falar do assunto.
De acordo com um levantamento realizado pela Comscore, publicado em 2023, o Brasil é o terceiro país do mundo que mais utiliza as redes sociais, ficando atrás apenas da Índia e da Indonésia. A pesquisa foi realizada de janeiro de 2020 até o fim do ano de 2022.
O cenário é ainda mais preocupante ao considerar a faixa etária que mais utiliza redes como o Tik Tok e o Instagram, plataformas em que vídeos e postagens sobre saúde mental costumam viralizar. Em 2022, as hashtags mais buscadas foram #saudemental e #psicologia no Tik Tok, de acordo com dados da própria plataforma.
Com base em pesquisas realizadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o Tik Tok foi a rede social mais utilizada por crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos em 2021. O Instagram ocupava o segundo lugar.
Tik Tok foi a rede social mais utilizada por crianças e adolescentes em 2021. Imagem: Pexels
A utilização das plataformas de mídias sociais por essa faixa etária a expõe a inúmeros conteúdos relacionados a assuntos diversos, e, entre eles, vídeos e postagens sobre sintomas de psicopatologias. Não é raro encontrar vídeos com a temática “Sinais de que você pode ter TDAH”, com enumerações de sintomas da doença e nenhuma indicação de que a pessoa no vídeo é uma profissional da área da saúde.
A popularização desse formato de vídeo pode não só levar a diagnósticos equivocados, mas também dificultar o processo de diagnóstico realizado por um profissional. Para a psicóloga Helen Kezia Fingoli, especialista em Psicologia Clínica e Complexidade Humana, o autodiagnóstico pode resultar em conclusões imprecisas e errôneas sobre os sintomas:
“[O autodiagnóstico] pode causar muita ansiedade e estresse, e também pode resultar em automedicação e agravamento dos sintomas. Não só isso, mas contribui para o atraso do diagnóstico adequado e tratamentos específicos e especializados”, afirma.
A profissional também ressalta que a busca por informações a respeito do assunto por jovens e adolescentes em ambientes online pode estar relacionada com a dificuldade de se comunicar e se expressar abertamente sobre suas preocupações.
“Os jovens têm receio de serem julgados por seus problemas e preocupações, principalmente em relação à saúde mental. A internet pode parecer um ambiente menos intimidador”.
Emir Baiocchi Neto, psicólogo clínico e especialista em Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e em Psicoterapia Analítico Funcional (FAP), destaca o fator social e econômico como contribuintes para a busca do autodiagnóstico:
“Infelizmente, um trabalho psicológico de qualidade ainda é um pouco elitista, não é acessível para todo mundo. Quem não consegue encontrar um psicólogo com valor social ou um grupo terapêutico, e também não tem condições para pagar um profissional particular, vai buscar informações acessíveis, que são de graça. O problema é que, muitas vezes, isso mais prejudica que ajuda”.
Apesar do autodiagnóstico parecer um caminho para que o indivíduo entenda o próprio comportamento, a prática impacta tanto na realização do trabalho por profissionais da saúde quanto na melhora da pessoa que busca pelo diagnóstico de maneira alternativa. O psicólogo Emir Baiocchi afirma que a busca por informações sobre transtornos no meio digital pode resultar na dificuldade de acesso a uma orientação eficaz.
“Uma pessoa que, por exemplo, acha materiais online, baixa guias ou ebooks que talvez não tenham um conteúdo tão bom, podem tentar seguir aquilo e ver que não deu certo. Ela passa a acreditar que o problema é com ela, e a achar que tem mais problemas ainda”, declara.
A recepção de pacientes autodiagnosticados por profissionais
A psicóloga Hellen Kezia conta que já teve experiências com pacientes que se autodiagnosticaram apenas com informações obtivas através de testes feitos online.
“Já atendi pacientes que afirmavam ter TDAH após verem algum conteúdo e realizarem testes. E alguns ainda se recusam a realizar uma avaliação neuropsicológica para confirmar se realmente apresentam a condição. Nesses casos, eu realizo o processo de psicoeducação, e demonstro que a avaliação neuropsicológica é necessária”.
De acordo com o Instituto de Psiquiatria do Paraná, a psicoeducação é uma abordagem que busca ampliar o conhecimento do paciente, de seus familiares e pessoas próximas, a respeito de sua condição mental e do processo de tratamento. Essa abordagem contribui para que os pacientes aprendam estratégias que os levem a modificar pensamentos e crenças negativas, além de manejar estados emocionais.
Esse tipo de técnica permite que o paciente entenda mais sobre sua própria condição, e, em casos de autodiagnóstico, entenda a importância de passar por uma avaliação profissional para que seus sintomas sejam averiguados e tratados de maneira correta.
Automedicação como alternativa
Além dos problemas citados pelos profissionais, outra consequência do autodiagnóstico é a automedicação. De acordo com a última estimativa global de transtornos mentais realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), publicada em 2023, o Brasil é o país com maior proporção de pessoas ansiosas no mundo, representada por 9,3% da população. Além disso, é o segundo país das Américas com maior prevalência de depressão.
Mesmo assim, é estimado que apenas 5,1% dos brasileiros façam tratamentos com psicoterapia, enquanto 16,6% da população, o que representa 1 a cada 6 brasileiros, faz uso de remédios. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Instituto Cactus, entidade ligada à promoção do bem-estar mental, em conjunto com a AtlasIntel, empresa especializada em pesquisas e dados. O levantamento, realizado em 2023, revela que o perfil que mais adere à modalidade de psicoterapêutica são jovens, estudantes, brancos e mulheres, com maiores níveis de renda e escolaridade.
Brasil é recordista em automedicação, segundo o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ). Imagem: Pexels
Um outro levantamento, dessa vez do Conselho Federal de Farmácia, aponta que a comercialização de antidepressivos e estabilizadores de humor no Brasil cresceu cerca de 58% entre os anos de 2017 e 2021.
Os dados refletem a dificuldade de acesso de pessoas de baixa renda e marginalizadas a processos terapêuticos, e ainda demonstra a tendência da população brasileira ao uso de remédios para o tratamento de doenças mentais. Com a prevalência de diagnósticos realizados sem o auxílio de um profissional da área, o uso de medicamentos representa uma alternativa perigosa, já que o indivíduo não tem conhecimento de sua própria condição e nem instruções profissionais para o uso da medicação correta.
Possíveis caminhos para evitar diagnósticos equívocos
Com um fluxo de informações tão intenso e rápido, a regulamentação das redes sociais em relação a conteúdos enganosos ou incompletos parece ser uma tarefa quase impossível. Principalmente porque grande parte dos conteúdos relacionados à saúde mental nas redes sociais não é completamente falso ou enganoso, mas indica, de certa forma, que se identificar com alguns sintomas é o suficiente para possuir determinada condição.
Nesse contexto, é possível evitar o diagnóstico equivocado e baseado em informações incompletas ou enganosas de algumas formas. Para Emir Baiocchi, alguns fatores devem ser observados nesse tipo de conteúdo:
“Observe se a abordagem utilizada é baseada em evidências científicas, isso já exclui várias abordagens. Também é bom evitar posts muito chamativos, que ofereçam promessas fáceis e rápidas”, orienta o profissional.
Em relação ao uso excessivo de redes sociais por adolescentes e crianças, o psicólogo também alerta para a importância do papel dos pais e responsáveis:
“Eu acho que existe muito comodismo em frente às telas. É preciso fazer o resgate dessas relações [fora das telas], estar junto. É importante propor atividades fora das telas, estar sempre conversando [com as crianças e adolescentes], estar sempre atento ao humor. Não temos como controlar o que é exposto na internet, mas é possível estar perto de quem a gente ama”.
As redes sociais como local de acolhimento
Apesar das consequências negativas da grande quantidade de conteúdos online relacionados a psicopatologias, algumas pessoas encontraram nesses ambientes um senso de identificação e pertencimento. É o caso da Laís, estudante goiana de 17 anos, que encontrou, através do Tik Tok, pessoas com experiências semelhantes à sua.
“Comecei a ver muitos vídeos de pessoas falando sobre como é viver com depressão. Eu já havia sido diagnosticada por um profissional, mas preferia não comentar com meus amigos e conhecidos. Quando comecei a ver mais pessoas que sentiam as mesmas coisas que eu, que tinham dificuldades parecidas, foi um alívio. Quando você não compartilha o que passa com ninguém, e não escuta ninguém falando sobre o assunto, é como se só você vivesse aquilo, é um sentimento muito solitário”, compartilha a jovem.
Para Laís, ver outras pessoas com depressão, compartilhando o que viviam, era acolhedor e, de certa forma, demonstrava que era possível viver a vida mesmo com o transtorno. A jovem conta que percebia os sintomas desde os 15 anos, mas não possuía condições econômicas para ser avaliada por um profissional. Apenas dois anos depois é que conseguiu passar por uma avaliação e receber o diagnóstico.
“Eu meio que já sabia, as pessoas já falavam bastante sobre o assunto, principalmente na internet. Mas eu queria ter certeza, queria passar por uma avaliação profissional, até pra não correr o risco de piorar o que eu estava sentindo”.
A estudante ainda destaca que, após o diagnóstico, viu que o transtorno era mais comum do que pensava, e que ver pessoas falando sobre o assunto nas redes sociais a ajudou a entender mais sobre si mesma.