Você conhece um cientista?

A trajetória acadêmica do pesquisador e professor Dr. Eric de Souza Gil
Tempo de leitura: 15 min

O Prof. Dr. Eric de Souza Gil é farmacêutico e bioquímico formado pela USP, tem dois pós-doutorados, mais de 550 produções bibliográficas, mais de 4.800 citações em trabalhos acadêmicos e é um revisor constante de periódicos. Atualmente é professor na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Goiás.

LabNotícias: Primeiro gostaria de saber qual a sua naturalidade, sua trajetória até a faculdade e como se deu a decisão do curso.

Dr. Eric: Eu nasci em Campinas. Se for bem lá atrás mesmo, sempre fui muito curioso com tudo, desde criança. E uma das coisas que levam você a ser mais curioso são as ciências, entender como as coisas acontecem, como se transformam. Também tinha muita curiosidade com geografia, saber como é um outro país. Então são as três coisas que eu mais gosto: química, biologia e geografia. Química e biologia dava pra unir, aí fiz técnico em bioquímica, que une as duas coisas. Terminando, eu nem sabia que existia curso de farmácia. Meus pais são semianalfabetos, na minha família só eu consegui estudar, tenho três irmãos; fora minha irmã gêmea, todos os demais, pai, mãe, os outros dois irmãos não terminaram o primário.

Isso leva você a demorar, a ter um atraso para conhecer as coisas. Mas eu era muito curioso e, por isso, estudioso. Enquanto fazia técnico em bioquímica, fiz muitos estágios como técnico, foi quando entrei na faculdade. Meu curso foi noturno, logo que entrei já fui contratado para ser funcionário da universidade e segui praticamente a faculdade inteira trabalhando como analista. Trabalhei com controle de qualidade de medicamentos dentro da faculdade de farmácia e os outros anos eu trabalhei na química, onde passei a ter contato com pós-graduandos; fiz amizades lá mas, no geral, na época a pós não me interessava muito. Além disso, essa era outra coisa que, considerando o meu histórico familiar, eu não tinha muita noção: como era para ser Mestre, Doutor, etc.

Eu pensava em continuar trabalhando como analista como sempre foi e me dei essa chance. Fui para indústria, estagiei três meses e no estágio eu vi que ia ser uma rotina mais estática, que não aprenderia muito ali. Aí eu pensei em experimentar fazer a pós, fiz a pós, me dei bem e terminei em tempo recorde o mestrado. Terminando o mestrado na USP, como eu tinha trabalhado, estudado e morado lá dentro, pensei em voltar para uma outra universidade do mesmo nível e para ter desafios novos, conhecer gente nova. Por isso, resolvi ir para a Unicamp.

Em princípio, eu queria voltar para seguir fazendo a mesma coisa que tinha feito no mestrado, que era na área de química farmacêutica. Apesar de ter trabalhado a vida inteira como analista, com química analítica, controle qualidade, eu não quis fazer mestrado nessa área porque trabalhava nela desde os 15 anos.

Mas quando eu fui para Unicamp, pensei, “agora chega de desafio, o desafio é só ir pra Unicamp, vou procurar a mesma área”, mas, por acaso, eu perguntei para alguém se algum profissional atuasse na área de meu mestrado, bioinorgânica, compostos bioinorgânicos com atividade farmacológica, e me indicaram um cara que trabalhava com biossensor, o que não tinha absolutamente nada a ver.

E eu cheguei lá, começamos a conversar e ele se interessou por mim, e eu acabei me interessando também por um novo desafio que era voltar para a analítica, mas numa área diferente e que eu nunca tinha atuado, que era eletroanalítica, eletroquímica; acabei fazendo. Foi um baita desafio, talvez um dos maiores porque ele logo saiu para fazer pós-doc. Fiquei sozinho e eletroquímica é uma ciência um pouco difícil para você chegar já no nível doutorado não tendo nenhuma informação prévia, foi difícil, mas ainda assim terminei em tempo recorde por causa da habilidade que eu já tinha no laboratório.

Logo surgiu uma oportunidade de dar aula numa área que não era nem a do mestrado, nem a doutorado. Naquela época, em meados do governo FHC, as universidades foram sucateadas, eu não tinha muita perspectiva de trabalhar em Federal, e foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar em uma particular lá em Mato Grosso do Sul. Então eu vim para o Centro-Oeste e fiquei 5 anos lecionando em 3 universidades privadas.

No início foi muito bom, ganhava bem, e aprendi a lecionar. Fui pra lá para dar farmacotécnica, uma disciplina concomitante de controle de qualidade e praticamente ia fechar a minha formação para ficar realmente completo em controle de qualidade, porque envolvia tanto a qualidade quanto a produção do medicamento. A farmacotécnica têm correlação com controle de qualidade, disciplina pela qual fui contratado aqui na UFG e trabalhei a maior parte da minha vida, antes e durante a faculdade.

LabNotícias: No controle de qualidade o senhor trabalhava antes apenas com medicamentos?

Dr. Eric: Controle de qualidade eu trabalhei em indústria de defensivos agrícolas, tintas, aços, metalúrgica, controle de qualidade de tudo, e também de medicamentos.

Prestei o primeiro concurso em química farmacêutica, acabou que não deu certo e depois acabei prestando aqui em controle e passei. Pensei ser esse mesmo o meu destino, sempre fui muito flexível com o que a vida me ofertou. Me mudei de Campo Grande para Goiânia, foi ótimo ter mudado para cá, porque a UFG estava em plena ascensão.

O fato de eu ter passado por diferentes áreas me possibilitou que eu diversificasse bastante, tivesse uma criatividade ainda maior para pensar pesquisas, fazer coisas diferentes.

Tais como desenvolvimento de biossensores para análise de medicamentos, biossensor para análise ambiental, e de alimentos; caracterização eletroquímica de fármacos, incluso em associação a modelagem molecular e outras ferramentas da química farmacêutica  e até remediação eletroquímica. Esta versatilidade, contribuiu para o sucesso da minha produção que aqui (na Faculdade de Farmácia-UFG) é uma das cinco maiores e na UFG está entre as 60.

LabNotícias: O que lhe faz continuar com o trabalho acadêmico tão ativo e vasto?

Dr. Eric: Uma coisa na vida eu nunca aceitei, o comodismo. É coisa de princípio de vida mesmo. Eu acho que a gente não vem nesse mundo, para levar dinheiro ou título mas se a gente levar alguma coisa, certamente é o que se aprendeu ou evoluiu. E a evolução está associada também à evolução intelectual, a não se acomodar, e a sempre querer aprender mais, não estagnar. Essa filosofia sempre me norteou.

Outro aspecto bem básico, é o meu respeito ao dinheiro público. Acho temeroso quem entra na universidade e se acomoda porque têm garantias.

Por sua vez, meus cinco anos em universidades privadas criaram um delay na produção porque nas universidades particulares, em geral não há apoio à pesquisa, logo o que pude fazer foi muito básico e simplório, eu fazia o que era possível.

LabNotícias: A respeito da docência, na carreira acadêmica, os profissionais optam pela excelência apenas por uma das duas funções primordiais, já que ambas exigem muita dedicação, a de pesquisadores ou de professores. Como o senhor consegue conciliar ambas?

Dr. Eric: Depois de cinco anos na particular, eu passei a gostar da docência, e valorizar o desenvolvimento da didática. Apesar das inerentes dificuldades iniciais, creio que evoluí bastante e inclusive fui Paraninfo, e Nome de Turma e homenageado algumas vezes.

Esta função é bem árdua e desmotivadora quando o nível da turma é muito fraco. Contudo, temos que executá-la da melhor forma, mesmo que no automático e sem paixão mas com a responsabilidade exigida para uma tarefa de suma importância. 

A respeito da pesquisa, eu acho que não tem como numa universidade você dar aula no nível universitário e abandonar pesquisa, porque ela te faz continuar estudando e, portanto, se atualizando. Ou seja, a pesquisa é fundamental para a boa performance docente. Esta premissa vale também para controle de qualidade, uma disciplina estática e pouco mutável, que desde meus  15 anos, quando nela atuava como analista, segue praticamente idêntica. Na verdade, costumo dizer que esta disciplina pela qual sou responsável, é mais voltada à extensão, onde se aplicam conhecimentos consolidados. Esta característica peculiar, infelizmente, a torna pouco popular entre estudantes do curso de farmácia, que geralmente não a apreciam muito. Um desafio extra!

Contudo, um dos carros chefe do controle de qualidade, é a parte de química analítica, e é aí que centrei minhas pesquisas e tentei sempre propor métodos alternativos aos arcaicos.

Neste contexto, a eletroanalítica, área na qual fiz meu doutorado, por ser pouco familiar e explorada nas ciências farmacêuticas, viabilizou inúmeras propostas de inovação.

Ressalta-se que meu retorno a esta área, considerando a brevidade do Doutorado, ausência do orientador, bem como os cinco anos de interrupção durante tempo no setor privado, não foi nada trivial. Eu tive que, com muita humildade, recomeçar quase que do zero, participando como doutorando da escola de eletroquímica, oferecida pela USP, em São Paulo, sendo que eu já era Doutor há muito tempo.

Outra medida foi buscar oportunidades de realizar pós doc. Entretanto, meus e-mails, ou sequer eram respondidos, ou eram negados, face à lacuna de 5 anos sem produzir na área, e minha sinceridade em dizer que meu objetivo principal era me nivelar.

A oportunidade veio ocorrer em um congresso da área, realizado na Espanha, onde apresentei 6 trabalhos, e a presidente da mesa, uma das pessoas que havia negado via email, me convidou a realizar pós-doc em seu grupo.

Uma das condições era que o tempo mínimo fosse de 12 meses, porém como minha esposa estava bem empregada na época, eu recusei, pois seria muito tempo para me separar novamente, já que ela havia sacrificado a carreira uma vez. Contudo, minha esposa estava ao lado, e fez questão de que aceitasse. Na verdade, para além da eletroquímica, a experiência cultural de viver um ano em Portugal foi excepcional para toda família.

Meu pós-doc marcou minha ascensão, na altura tinha 25 artigos, poucos anos após minha volta eu fui para 50 e o fator de impacto quadruplicou. Hoje são 160…

LabNotícias: A esse respeito, quando foi que o senhor sentiu que sua carreira começou de verdade?

Dr. Eric: Foi lá mesmo, no pós-doc, em meio a pessoas de alto nível, e aquela pressão positiva de estar nivelado, inclusive para escrever em inglês que eu aprendi a criar estratégias para escrever sem precisar de revisor, bem como a discutir e apresentar meus resultados com melhor desempenho.

Com o tempo, fiquei mais reconhecido no cenário, o que me levou a estabelecer outras boas parcerias nacionais e internacionais.

LabNotícias: Hoje o senhor ministra uma matéria chamada Wine Sciences (ciências do vinho), na UFG, quando é que surgiu esse interesse pelo vinho, essa vontade de querer saber mais, ir atrás, buscar…

Dr. Eric: Entre 2007 a 2012, eu e um grupo de professores da UFG íamos toda sexta-feira ou pelo menos duas vezes por mês em uma cervejaria que tinha cerveja artesanal, onde aprendi a conhecer cervejas diferentes. Mas vinho eu conhecia muito pouco, e foi também em Portugal, apenas em 2012, porque lá não tinha cerveja artesanal, só cervejas pilsen das mais simples, mas tinha muito vinho bom, barato, que eu passei beber e melhor conhecer vinho, bebida sabidamente mais saudável.

Conheci todas as regiões de Portugal, e vários países da Europa, durante meu pós-doc de 15 meses, que incluiu também aspectos gastronômicos e enológicos.

Na altura eu orientava uma aluna, cujo tema não deu certo e, devido ao prazo, eu tinha que pensar no “plano B” rápido, então pensei em fazer um trabalho sobre vinhos. Foi na área da eletroquímica, para avaliar a atividade de antioxidantes, monitorar os fenóis e etc, eu tinha escrito já duas revisões. Aí eu falei incentivei ela a pesquisar isso, várias uvas, de várias regiões, fazer com duas técnicas e comparar. Ela fez, publicamos o artigo em revista de alto impacto, que antes apresentamos em congresso na África do Sul.

Aqui é outra coisa também que eu sempre direcionei, congresso. Na minha área a sociedade é muito forte, a sociedade de eletroquímica é muito forte em congresso em todo lugar do mundo.

Nessa época que a UFG estava crescendo devido aos incentivos governamentais e houve muito incentivo à pesquisa, também foram criadas muitas universidades, tinha muito incentivo para você fazer troca, intercâmbio e isso também foi uma motivação para eu trabalhar, e aliava outra coisa que eu gostava lá de criança que era geografia as outras culturas então todo congresso eu pensava em unir o útil ao agradável, unir a química à geografia. 

Durante minha estada na África, aproveitei um dia para visitar uma vinícola, onde um vinho extraordinário e de tal complexidade, que me fez definitivamente, um curioso enófilo.

No início achava que aquela complexidade vinha de aditivos. Quando soube que tudo vinha uva, terroir e sua vinificação natural, fiquei fascinado pela enologia, em especial, porque a mesma une porque química, biologia e geografia.

LabNotícias: E aí quando foi que o senhor decidiu de fato criar a matéria Wine Sciences?

Dr. Eric: No começo da minha atuação como coordenador da pós-graduação, tínhamos várias reuniões e, dentre elas, as de internacionalização. A UFG quase ganhou o Capes Print, que era o projeto que ia ganhar subsídios da Capes para internacionalização. Como ficamos perto de ganhar, a UFG investiu nesse programa de internacionalização, e dentre as demandas estava a necessidade de criar mais disciplinas em inglês. Apesar de muito desafiador, dar aula em inglês, era também uma boa oportunidade de aprimorar minha capacidade de conversação. 

Minhas disciplinas não seriam atrativas, e em conversas me sugeriram falar sobre vinhos. Em um primeiro momento, eu achei que não seria pertinente, mas depois, ao considerar toda a ciência envolvida e a estrita relação destas com farmácia, além de ser um ramo que está crescendo muito, decidi criá-la inclusive para graduação, mestrado e doutorado.

LabNotícias: E quais as projeções para o futuro acadêmico?

Dr. Eric: Isso é uma coisa que eu tenho pensado muito, esse governo que a gente passou agora foi bem desmotivador. Eu fiquei horrorizado.

LabNotícias: O senhor sentiu impacto de imediato?

Dr. Eric: Eu sou coordenador da pós, vi todas essas aberrações. Foi imediato, todos os problemas com Ministros da Educação, as conspirações antivacina, as polêmicas da cloroquina, falar que a Universidade Pública é balbúrdia, entre outros. Cortaram muitas bolsas e houve uma debandada no interesse dos alunos para fazer pós, foi difícil, deu uma boa desmotivada e fora isso também caiu muito nível, eu só tenho aluno que trabalha, tirando um só, todos trabalham. Para você fazer uma boa pós você tem que estar em tempo integral, a gente tem que ter uma criatividade imensa para conseguir fazer esse aluno sair, terminam o trabalho e às vezes não tem uma boa qualidade.

Isso é desmotivador e eu fiquei repensando muito. Se o presidente atual tivesse sido reeleito acho que eu não sei o que faria, não conseguiria aguentar mais quatro anos desse governo, não consigo imaginar.

Eu acho que ia concentrar na aula, estava pensando em tentar focar no negócio que eu nunca fui muito forte que a extensão é tentar pensar em dar cursinho de extensão, por aí. Mas agora existe essa perspectiva de retomar a ciência.

Eu gosto de fazer pesquisa, eu acho muito importante, mas eu ainda penso em arrumar um pouco para extensão, até esse curso de wine sciences pensei em fazer curso de extensão em português pro público externo.

LabNotícias: Eu também queria perguntar sobre os países que o senhor já visitou, foi pelo vinho também?

Dr. Eric: Pisar nos 5 continentes, esse era um dos sonhos que eu tinha de infância, ou seja conhecer novas culturas, conhecer o país islâmico, conhecer um país africano, um país asiático, um super desenvolvido. Eu sempre tive essa fascinação de ver como o ser humano se porta em diferentes situações e ver o que dá para pegar de bom dali. Hoje, incluo também o enoturismo nesta pauta.

LabNotícias: O senhor já viajava antes?

Dr. Eric: Antes da UFG, fiz apenas 3 viagens internacionais, Argentina e México, pelo doutorado, e República Dominicana, durante minha atuação em particulares, sempre aliando trabalho, congressos e cultura. Na UFG, durante o governo PT, várias oportunidades de participação em congressos, ciências sem fronteiras, missões científicas surgiram. Hoje conheço mais de meia centena de países.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *