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Todo santo dia, acordo antes do meu pai, tão cedo que o sol ainda dorme, não posso esquecer do preparo do café da manhã, acordo e tiro a coberta lentamente, sento na cama e procuro meus chinelos brancos encardidos, com  tiras azuis,  para não acordar o restante dos meus irmãos, levando em câmera lenta rumo a cozinha.

 O silêncio é crucial neste primeiro trabalho, papai não gosta de atrasos e muito menos de ser acordado. Caso isso ocorra o trabalho seria em dobro, um velho ditado diz que o tempo é dinheiro, toda minha família levava isso a sério, para eles as coisas eram assim, porque tinham que ser. Cheguei na cozinha, olho para trás e nada de gritos e hoje aquele desespero de culpa não me assombrou.

Na fila de irmãos sou a terceira mais velha, hoje somos 10 em casa, os mais velhos já saíram de casa, meu nome é  Valdivina, mas me chamam de Val, mas gosto que escrevam com W, acho que fica mais chique. Meu pai é o Sêo Raimundo e minha mãe é a Dona Benta, mas mamãe merecia até o título de santa antes do nome, de tão adorável e doce.

Papai por outro lado é bruto, seco e às vezes cruel. 

  Hoje é dia 06 de maio de 1965, falta um mês para o meu aniversário de 10 anos. Mas isso nunca foi importante, eu tinha que manter fresco na cabeça que depois do café da manhã meu lugar era do lado do meu pai, ajudando na colheita, escuto o dia todo de papai:

— Primeiro eu arranco os ramos (feixes), com os grãos de arroz na mão, depois coloco tudo junto transversalmente sobre os colmos decepados, para que as panículas não fiquem em contato com o solo e é preciso manter expostas ao sol. Os feixes precisam ser colocados no mesmo sentido, para facilitar o transporte depois para o local da trilha. 

 Meus movimentos repetitivos são iguais aos cortes do capim navalha que me torturava e me lembrava da prisão que me mantém aqui, mas ele nunca foi o meu maior inimigo o sol quente me deixava tonta e com sede sempre por volta das 11:00.

— Papai, estou com sede! Posso beber água.

— Claro que não menina, isso é desculpa para não trabalhar. Volte agora para o que você estava fazendo e não enche.

Continua, colhe, arranca o capim, limpa o suor, tira o arroz, puxa, tira, olha para o sol, um passinho…

— Abre os olhos Val, bebe água e volte para o trabalho imediatamente..

Eu voltei chorando para o trabalho e eu disse que sairia dali.

A dor aumentava quando estava no banho frio, do banheiro improvisado que meu pai criou, mas a dor maior era não ter a minha liberdade, deitei novamente na cama, orando para não acordar, ou por um milagre. 

Dia 05 de Junho de 1965, amanhã é o meu aniversário, papai disse que Ritinha estava chegando, não somos de receber visitas, por morarmos longe da cidade o acesso ao Brejo da Malhada, nome que meu pai deu ao lugar que moramos, era quase impossível de ter visitas, mas esse era o meu milagre, meu presente, minha oportunidade de sair de casa e ir para algum lugar. Ritinha era uma mulher branca, chegou com um vestido que batia no joelho,florido, com detalhes verdes, com um brinquinho delicado combinando com o seu colar dourado, sandálias de salto baixo e branco.

Ela morava na fazenda vizinha, foi embora estudar e para se casar, meu conheceu a família dela trabalhando e ela como uma mulher boa estava aproveitando para passar um dia com a gente. Planejei em minha mente de pedir para ela me levar com ela, finalmente ela chegou e na primeira oportunidade, pedi.

— Claro Walzinha, você com certeza pode ir comigo. Vou conversar com seus pais, bom que você me fará companhia. 

Meu coração pulava de alegria, meu pai não pensou duas vezes em me deixar ir, minha mãe me abraçou chorando em silêncio, pediu desculpas e disse que estaria sempre orando por mim. Arrumei minha sacola e fui, assim como meus irmãos mais velhos foram, chegou a minha vez.

Mais de 10 horas de viagem, até chegar! A casa era uma mansão, linda, enorme e com um mercadinho na frente. Assim que eu cheguei um homem mais velho veio me cumprimentar, Ritinha me disse que ela era um serviçal da casa. 

Esse homem era mudo, usava uma calça jeans bem gasta e uma camiseta de botões branca, ficava com um cigarro de palha na mão e um café em um copo americano na outra. Quando o homem me viu, olhou no fundo dos meus olhos e balançou a cabeça senti uma pontada na minha espinha, mas ignorei.

Naquele momento, Ritinha me jogou em um quarto que ficava no sótão, era pequeno comparado ao restante da casa, o cheiro de mofo era muito forte. Esse quartinho, ficava próximo ao mercadinho e só cabia uma cama e uma pequena cômoda.

Em um mês Ritinha já estava lavando toda a casa sozinha, Ritinha tinha dois filhos da minha idade, mas eles não podiam me ajudar, estavam sempre estudando. Eu comecei a frequentar as escola em agosto, mas nunca tive caderno e muito menos lápis, borracha de qualidade, eu ganhava o que sobrava ou quando a Ritinha ficava orgulhosa dos meus trabalhos domésticos. 

Além de lavar toda a casa, uma vez por semana eu precisava andar muito para lavar as roupas de todos que moravam ali na casa. Os filhos de Ritinha me ajudavam a carregar as pilhas de roupas até o córrego, que não ficava tão próximo do mercadinho.  

Ali no córrego começava o meu sofrimento, com as roupas já molhadas, batia as roupas na tábua para tirar a sujeira e em seguida esfregava roupa por roupa na mão, além de todo cansaço e dificuldade, por conta do tamanho das minhas mãos os filhos de Ritinha brincavam e me provocava, escutava que gente como eu nasceu para servir e que eu nunca venceria, jogavam coisas em mim, toda semana minhas lágrimas ajudavam a lavar desde as roupas de Ritinha as roupas do serviçal mudo.

E mais uma vez a sequência repetitiva voltou a atormentar a minha cabeça, lavar  para  quarar, depois enxaguar, torcer e colocar para secar, olho para o céu, um pássaro, desta vez um lindo passaro preto cantando e parando bem na minha frente, asolrando um lindo edoloroso som da liberdade. Volto no fim do dia para casa, desta vez estou sozinha e preciso fazer várias viagens para chegar com todas as roupas.

Anos se passaram e parte desse momento da minha vida tenho vergonha de contar, vergonha porque sentia medo e medo porque me sentia culpada. Depois de algum tempo, o serviçal de Ritinha, o mudinho começou a se comportar diferente comigo, me seguia naquela casa enorme e o desconforto começou a ser tornar agulhas que dilaceravam meu coração. 

Mudinho não falava, mas era capaz de sentir o meu medo, quando ele estava perto eu sentia a malícia no olhar e suava em cada movimento que ele lentamente fazia, começou com alguns toques no meu corpo, em seguida começou a me mostrar seu órgão sexual…

Eu precisava ir embora de novo, senti falta da minha casa, falta do meu pai e principalmente da minha mãe, aquele não era o meu lar, a quantidade de trabalho era muito maior e o desejo de liberdade só aumentava.     

Sigo suportando calada, agora tenho que cuidar da mercearia e cansaço do trabalho e da vida que levo só aumentava, a cada dia fica mais difícil suportar o cotidiano. Nessa mercearia foi onde conheci Raimundo, com seus cabelos negros, que só ficava no olho e sua pele branca, chega brilhava. 

Novamente, vi uma oportunidade nele, eu tinha certeza que ele tinha se interessado em mim. Todo dia fazia questão de ficar nas vendas, só para conversar com aquele homem. 

Raimundo e eu nos casamos, Ritinha no começo ficou furiosa, mas não podia fazer muita coisa. Tive três filhos e me mudei, parei na terra da pecuária e da soja, a capital de Goiás  me acolheu, cuidou e regou de mim. 

Perdi Raimundo em 1995, no fim das contas eles não era um homem tão bom assim, mas não podia reclamar, tinha meu emprego, ganhava meu dinheiro e aos poucos conquistei minhas independência financeira e espiritual. 

Hoje ao som do pássaro preto na gaiola, fumo meu cigarro, sentada em frente as minhas máquinas de costurar e conto diversas histórias para os meus netos, principalmente para uma que vive perguntando como era a vida no passado.  

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