‘O sertanejo não é um gênero, é um estilo’: o caminho que levou a música sertaneja aos principais palcos do Brasil

O surgimento da música caipira, a modernização e consolidação do estilo mais popular do país
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Sertanejo, de acordo com o dicionário de língua portuguesa é: relativo a ou próprio do sertão. O estilo musical surgiu assim, contando as histórias do sertão, da vida caipira. Entretanto, com o passar dos anos o estilo evoluiu, seguindo a evolução da sociedade.

Em “Tristeza do Jeca”, composição de Angelino de Oliveira em 1918, o eu lírico sofre por amor enquanto fala do campo – lugar onde vive –, já em “Saudade da minha terra”, o eu lírico fala da saudade do campo, já que na cidade não encontrava a felicidade. Vale ressaltar que essa música data da década de 60 e coincide com o início do Êxodo Rural. Em 2003, Bruno e Marrone lançaram a música “Ligação Urbana”, em que o eu lírico já vive os problemas da vida urbana e das tecnologias da época. Por fim, em “Zap”, música interpretada por Lauana Prado e lançada em 2021, é citado o app Whatsapp e uma situação que só os dias atuais permitem acontecer.

Mas afinal de contas, o que é a música sertaneja?

O sertanejo não é um gênero, é um estilo

Dudu Purcena, youtuber e criador de conteúdos

Dudu Purcena explica:

Por exemplo se eu pego um violão e falo vou tocar um samba. Eu faço o ritmo do samba no violão. Eu vou tocar um tango, eu faço um tango no violão. Agora, fala toca o ritmo sertanejo. Que ritmo é esse que toca no violão? Não existe. O sertanejo é um estilo. O sertanejo até hoje se mantém, diferente de vários outros estilos ou de gêneros que já foram protagonistas do cenário brasileiro, por conta dessa facilidade em se modernizar, se adaptar aos novos tempos. A popularização total do sertanejo é a partir dos anos 80, mas nos anos 70 já era bastante popular, principalmente entre o ‘povão’. A grande mídia ignorava, fingia que não existia e enquanto eles ignoravam Milionário e José Rico lotavam qualquer lugar onde se apresentavam. A valorização e a popularização aconteceram porque o sertanejo foi se modificando. O grande problema dos tradicionalistas do sertanejo é achar que para sempre música sertaneja vai ser o cara contando como que é tirar leite da vaca na roça todo dia cedo, mascar um fumo e comer franguinho na panela. A realidade não é essa. Eu acho que quando a pessoa fala isso ela está diminuindo a música sertaneja ao ponto que ela não consegue alcançar o patamar da arte. A arte imita vida, a realidade. E a realidade hoje, na verdade há muito tempo, como em ‘Saudade da Minha Terra’ já era um cara nos anos 60 lamentando ter deixado a roça, lamentando aquela mudança de vida. Estamos falando dos anos 60, quando foi lançada essa música. Em 2023 tem mais gente na cidade ou na roça?

O pai da música sertaneja

Cornélio Pires

Cornélio Pires, jornalista e escritor, é considerado o pai da música sertaneja. O jornalista não foi quem inventou o sertanejo, mas foi o primeiro a colocar a cultura caipira em discos.

Cornélio foi o primeiro produtor independente do país, fundador do mercado fonográfico sertanejo e o primeiro a lançar uma moda de viola. Em 1929, ele se tornou produtor e gravou músicas caipiras em discos de 78 rotações. Cornélio financiou 30 mil cópias de discos com músicas caipiras em parceria com a gravadora americana Columbia. Como foi ele quem financiou, estes discos não saíram com o tradicional selo azul da gravadora, mas sim com um selo vermelho escrito “Série Cornélio Pires”. O escritor foi também o responsável pela comercialização. Esses discos foram vendidos na estrada que liga São Paulo a Bauru em pouco mais de dois meses e fizeram tanto sucesso que foi necessário uma nova remessa de discos.

A modernização e as influências de outros estilos

Ao longo dos anos, a música sertaneja deixou de ser aquela que falava da roça e passou a ser a que fala do dia a dia da cidade. Influência de outros gêneros foram incorporadas aos poucos às músicas.  A guarânia, a polca paraguaia, o chamamé, a milonga, o rasqueado, o samba, o pop rock, a vanera, o arrocha, a bachata, a pisadinha, o funk e outros mais são exemplos de ritmos que estão no sertanejo.

Contudo, essa modernização sofre críticas por parte do público, e não é de hoje. Milionário e José Rico, Chitãozinho e Xororó, Luan Santana, Ana Castela, entre outros artistas. foram, em algum momento, acusados de não serem sertanejos. O youtuber e criador de conteúdo, Marcão Blognejo, falou sobre essas críticas:

Eu acho que é só uma necessidade de um público mais conservador de estar sempre requentando essa polêmica, essa reclamação. É uma coisa que nunca foi diferente, desde que os artistas do sertanejo viram a necessidade de adaptar aos novos tempos. Eles eram criticados por isso para que tinham que manter um padrão pré-estabelecido de uma dupla com roupas iguais tocando viola e violão com no máximo um sanfoneiro acompanhando, ou no máximo dois violões. Não poderia ter uma mudança ali na sonoridade. Milionário e José Rico não gostavam, por exemplo, de serem chamados de dupla caipira que era o mais comum antigamente. Léo Canhoto e Robertinho colocaram guitarra, colocaram banda numa época que não existia isso no sertanejo. Chitãozinho e Xororó gravaram a primeira música mais romântica, que foi “Amante” em 1984 e receberam um hate absurdo. Eles foram extremamente criticados pela imprensa mais conservadora ligada ao sertanejo na época por gravar uma música totalmente fora dos padrões. Zezé Di Camargo foi criticado pela Inezita Barroso no começo dos anos 90, sendo chamado de não sertanejo. É uma coisa que vai voltando com o tempo para a galera que não consegue entender que essa é a forma encontrada desde sempre de manter a música sertaneja relevante. Porque os segmentos que não vão se reciclando com o tempo e absorvendo influências de novas sonoridades, de um novo público, vão perdendo a importância até sumirem. Se a gente for analisar o rock nacional, por exemplo, ele é quase que irrelevante no cenário atual justamente por não fazerem um som que aproveitou das novidades, que absorveu novidades. Então a gente vai perdendo relevância de alguns gêneros por causa disso e os que absorvem essas novidades vão se mantendo.

No fim dos anos 2000 e começo dos anos 2010 se estabeleceu uma nova era na música sertaneja. Artistas como César Menotti e Fabiano, Victor e Leo, Nechivile, Jorge e Mateus, João Bosco e Vinícius, Maria Cecília e Rodolfo, João Neto e Frederico entre outros, começaram a fazer sucesso com o chamado Sertanejo Universitário.

O termo universitário explica muito bem o seu surgimento. Como explica o produtor Ivan Miyazato, em entrevista concedida para o canal Dudu Purcena – Alma Sertaneja, os bares tinham muitos shows de duplas e quem frequentavam esses locais eram os universitários que saíam da faculdade, popularizando, cada vez mais, essa nova vertente.

Fernando, cantor e violeiro, falou da importância do sertanejo universitário como porta de entrada para o público consumir mais música sertaneja raiz:

Inicialmente o povo tinha vergonha. Um jovem na faculdade tinha vergonha e outra coisa não gostava. Hoje em qualquer faculdade você pode chegar e ir lá que os meninos têm o disco e mostra. De primeira eles não mostravam. Hoje está forte porque a galera da faculdade gosta do moderno, mas não despreza o antigo. E esses meninos novos que estão cantando, como por exemplo o João Carreiro, ele pega aquele antigo com a roupagem nova sem mexer em letra, sem mexer em nada. Só vai acrescentar mais. E a galera curte.

Ana Lara, influencer sertaneja, complementa:

Todo mundo fala que os sertanejos antigos têm preconceito dessa galera nova. Óbvio que tem, muita gente tem. Mas a gente foi num evento esse ano no Paraná e o meu pai [Fernando] falou uma coisa muito bonita: ‘um passarinho sabe cantar, você tem que respeitar ele pelo que ele sabe cantar, pelo que ele sabe fazer’. Então eu sempre aprendi muito, porque não existe isso de preconceito. Mesmo essa galera que que faz trabalha nessas novas vertentes do sertanejo são influenciados pelo sertanejo raiz, pelo sertanejo caipira, que é a base sólida do sertanejo. Se não fosse o meu pai, se não fosse essa galera antiga começar e dar tanto essa valorização o sertanejo de hoje não existiria.

Goiânia como a capital do Sertanejo

Nas últimas décadas Goiânia se estabeleceu como a capital do sertanejo. Marcão Blognejo explica essa consolidação da capital goiana no cenário musical:

Antigamente São Paulo centralizava tudo. A galera tinha que ir para lá tentar a vida, porque os contratantes iam para lá se reunir para vender show, os estúdios e as gravadoras estavam lá. Não tinha nada fora de São Paulo, tudo funcionava na capital paulista e era meio que obrigatório você ir para lá para poder fazer as coisas acontecerem. Essa era do Universitário descentralizou um pouco isso, mas fortaleceu em Goiânia com o tempo, porque os grandes escritórios passaram a se estabelecer em Goiânia. Então ali a gente viu crescer a força da Audiomix e da Workshow com o tempo, os dois maiores escritores dessa fase áurea do sertanejo recente. E isso atraiu os demais escritórios, grandes produtores, turmas de compositores. Começaram a ver Goiânia como um centro de referência e passaram a se dirigir mais para lá. E a galera da capital goiana, da região do estado de Goiás viu que não era mais tão necessário fazer aquela migração pra São Paulo para fazer as coisas acontecerem, que dava para fazer as coisas permanecendo em Goiânia.

Após essa consolidação da capital goiana como o centro da música sertaneja muitos artistas começaram a mudar para Goiânia em busca do sucesso. Porém, muitas vezes esses planos são frustrados, como explica o Dudu Purcena:

Eu sou uma das pessoas que quando converso com alguém hoje, que quer vir de fora, lá do Alagoas aqui para Goiânia, sempre dou uma freada, de bom coração, e falo para a pessoa: ‘pensa umas dez vezes antes de fazer isso, porque não é o que você tá pensando’. Mas é porque eu tenho pena de muita gente que vem aqui para Goiânia com essa intenção e sofre bastante. Muitas vezes se frustra.

E continua:

Diria que a pessoa, para ela vir sem investidor sem empresário, vir com a cara e com a coragem como eu costumo falar nos vídeos, só se ela estiver realmente predestinada e começar a tropeçar no pé de empresário e investidor por aí. Porque é praticamente impossível hoje a pessoa chegar aqui sem nada e falar vou ali cantar, vou conquistar o meu espaço e vou ser grande. Vou dar um exemplo: eu tenho uma amiga que chama Ariádina que canta muito, tem uma voz maravilhosa. Ela está aqui em Goiânia tem quase um ano. Claro, ela já se adaptou, tem uns bares que toca, ela pega muitos eventos particulares. Está ganhando dinheiro dela, está se mantendo, paga seu aluguel e tal. Mas assim, na minha opinião ela é nível de artista de primeiro escalão, de tanto que ela é talentosa, ela é diferente. Eu não estou falando que ela é boa, ela é diferente. Ela tem uma estrela artística diferente e ela já conhece uma galera e não acontece, parece que nada acontece. Parece que nada brilha ali e eu fico pensando: se essa menina que é maravilhosa, que canta do tanto que canta, que brilha do jeito que brilha, ela não está conseguindo nada demais. Aí eu olho e penso: cara eu tenho pena de quem realmente está acreditando que vai sair lá do Amapá, vir para Goiânia e a vida dele vai mudar. Eu tenho certeza de que vai, eu só não vou conseguir garantir se vai ser para melhor ou para pior.

Defensores da música raiz

Rafael Passos, Vinícius Henrique e Enzo Franco são três jovens músicos que compõem o trio “Os Altaneiros”. Enzo tem 17 anos, Vinícius 24 e Rafael tem 25, mas apesar da pouca idade o trio canta apenas músicas raízes. No álbum “Pra além dessa vida” há canções românticas, canções sobre a vida no campo e até mesmo uma rumba – ritmo cubano que foi inserido na sonoridade do sertanejo.

Os Altaneiros falam sobre o porquê de cantarem músicas raiz:

Eu acho que a gente tem que vender o que a gente consome. A gente desde guri sempre consumimos, música antiga, música boa. No nosso disco nós gravamos músicas, vamos dizer, genuinamente caipiras, mas também gravamos músicas românticas. Que é o que a gente gosta de cantar, de compor e de ouvir. Esse nosso disco foi uma forma de tentar resgatar um pouco dos ritmos que não eram tocados mais lá atrás, das músicas que ficaram meio esquecidas. Por esse motivo da música raiz.

O trio também falou das referências e inspirações:

As nossas as nossas referências são os ídolos Tião Carreiro e Pardinho, João Mulato e Douradinho, Liu e Léu, Zilo e Zalo, Mato Grosso e Mathias, Milionário e José Rico, Camões e Camargo, Belmonte e Amaraí, Tibagi e Miltinho, dentre tantos outros que a gente que a gente é fã.

Os Altaneiros falaram sobre sertanejos universitários que gravam músicas raiz:

A música que o Zé Neto e Cristiano gravou com o Trio Parada Dura. Chama “Vivendo aqui no mato” é uma baita música. Então fez um sucesso muito grande, de um estilo mais caipira de se cantar. Acho que se surgissem mais letras como essa não só falando do campo, falando assim do amor, porque nós cantamos o amor os altaneiros cantando amor. Mas de uma maneira leve, de uma maneira mais gostosa de ser.

O trio já tem um álbum gravado, intitulado “Pra além dessa vida” e vai lançar o novo álbum, com o nome “Sim” no dia 19 de janeiro de 2024. O novo álbum contará com canções românticas como a música que dá nome ao disco e outras no estilo raiz.

Também jovem, mas não menos defensora da música caipira, Ana Lara, influencer conhecida como a Musa do Sertanejo, mostra a sua rotina no Instagram. Ana participa e divulga festas de peões pelo país, sempre defendendo a cultura caipira.

A influencer de 20 anos tem Inezita Barroso como uma de suas maiores inspirações:

Depois meu pai, ela [Inezita Barroso] é uma das minhas maiores inspirações. Porque meu sonho da vida é ter um programa que defenda tão forte e firmemente a música. E ela fez tudo com tanta suavidade, com tanta leveza e tendo a certeza de que o que ela estava fazendo era bom, que era o real. Ela é uma grande inspiração.

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