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Rebeca Calgaro é psicóloga formada pela UFG e, atualmente, está desenvolvendo seu mestrado pela UnB. Especialista em psicologia escolar, Calgaro responde perguntas sobre as particularidades do Enem 2023 e sobre o ensino público em Goiás.

Foto da psicóloga Rebeca Calgaro sorrindo
Rebeca Calgaro atuou no Programa: Educação Socioemocional do Instituto Hortense em parceria com a SEDUC (Foto: Rebeca Calgaro)

Mariana: De onde veio o interesse pela área da psicologia, inicialmente? 

Rebeca Calgaro: Na verdade, o meu interesse pela psicologia sempre esteve muito misturado de alguma maneira com a educação. Eu cresci numa família em que a maioria das minhas tias, primas, familiares, são educadoras. Então sempre estive nesse meio e eu também sempre fui estudante de escola pública e, por isso, essa coisa de ter que lutar pela educação sempre foi muito presente na minha vida. Mas também tem um outro fator, que eu acho que tem muito a ver com o tema da entrevista, que é o fato de eu ter estudado em escola integral. E a escola integral, no modelo aqui de Goiás, ainda não tinha tido o Novo Ensino Médio, mas já tinha a disciplina de Projeto de Vida e nessa disciplina a gente tinha que pensar o que queria ser, que curso a gente ia fazer e etc. Aí, eu já ali no começo, no primeiro ano, comecei a flertar com a psicologia, no sentido de gostar de ouvir as pessoas, gostava  muito de aconselhar as pessoas, não muito forte, mas já tinha. Quando eu cheguei no terceiro ano do Ensino Médio, eu estudava no Liceu, eu tive uma disciplina que eles chamam de eletiva, porque é opcional. Era uma eletiva de psicologia, então eu tive algum contato a nível de Ensino Médio, bem simples mesmo, coisas bem básicas: o reconhecimento das emoções, quais são os principais autores. E foi aí que eu decidi que queria fazer psicologia. 

Mariana: Tendo contato com alunos, principalmente nesse ano de 2023, como você vê que eles estão lidando com essa questão de estarem no Novo Ensino Médio, mas terem que fazer o modelo tradicional do Enem, que querendo ou não, cobra conteúdos  que muitas vezes não foram vistos? Como afeta o emocional desses alunos? 

Rebeca Calgaro: Olha… Eu acho que vou ter voltar um pouco nessa… Não sei se você sabe mas existem as avaliações externas, a SAEGO, SAEB, que vão medir a qualidade do ensino. Só que os alunos do terceiro ano passaram o nono, primeiro e segundo ano na pandemia. E essas são séries essenciais que você vê a base, então por exemplo, no primeiro ano do Ensino Médio, você vê a base do segundo e terceiro, e é a mesma coisa pra quem está no nono. Aí entra o Enem, que quando foi criado era, também, uma avaliação externa. E, para isso, ele precisava ser uma prova que abrangesse todo o conteúdo do Ensino Médio, para que os alunos consigam fazer a prova. Então, o movimento foi de criar a avaliação, depois se tornar o Enem, depois usar o Enem para fazer, como se fosse um movimento uno da educação pública. Aí vem o Novo Ensino Médio na contramão disso, retirando as disciplinas que o próprio Enem exige. Só que isso não está claro se você for olhar por cima na grade. O próprio Novo Ensino Médio coloca a educação por itinerários, então as disciplinas básicas são português e matemática, e as outras viram itinerários. Então, quando você olha assim parece que é coerente, porque você não olha mais física, química, biologia, você olha ciências da natureza. Então vai ser ótimo, porque eles vão aprender ciências da natureza pro Enem. E não. É o contrário, quando você vai desdobrar esse currículo, você vai ver que eles diminuíram a quantidade de aulas do currículo desses estudantes. Então, na verdade, eles vão ter menos aula de biologia, menos aulas de química, menos aulas de física e na hora de fazer o Enem, como que eles vão fazer e saber, ter o conhecimento, se isso foi retirado do currículo?

Mariana: E o Enem continua cobrando a mesma quantidade…

Rebeca Calgaro: Exatamente. E assim, a mesma coisa pro inglês, o inglês ainda é menos, mas ainda assim. Para todas as disciplinas, menos pra português e matemática. 

Mariana: Essa fase do Ensino Médio é uma fase de muita descoberta para o jovem, até em questões como a área de interesse, onde estudar e realmente qual carreira quer seguir. E eles se veem em uma posição de, muito cedo, ter que decidir o que estudar já ali no Ensino Médio. Como fica mais essa pressão em cima do aluno?

Rebeca Calgaro: A pressão pela prova, pelo acesso ao ensino público, eu considero que tem uma diferença muito grande entre o ensino privado e o ensino público. Se eu pudesse fazer uma divisão bem arbitrária, né? Porque acaba sendo uma divisão arbitrária. O Enem como uma avaliação única, de certa maneira, aumentou a competitividade de acesso à própria universidade. Então, ele tem seus pontos positivos e ele tem seus pontos negativos. Só que esse ponto negativo e positivo, não vai acessar igualmente as pessoas, por causa justamente das desigualdades sociais. Então eu vou tentar dar um exemplo pra você: por um lado, o estudante da escola particular, antes, se ele quisesse fazer USP (Porque é o que acontece, né? Se você for lá no WR não tem ninguém tentando fazer o Enem pra entrar na UFG, eles estão querendo ir pra USP, pra Unicamp, pra Unesp…), eles tinham que fazer vários vestibulares pelo Brasil inteiro para entrar nessas Universidades. Quando você cria o Enem, você facilita o acesso dessas pessoas a outras universidades. Porque agora você não tem que estudar para 10 vestibulares diferentes, você tem que estudar pro Enem e eles vão competir entre eles. Então por um lado, para quem é de escola particular, facilitou. Por outro lado, para quem é de escola pública, a aparência dá a sensação de que facilitou, mas não facilitou. Quando o estudante de escola pública, mesmo dentro da cota, mesmo dentro das políticas públicas sociais que já incluem o Enem, ele vai precisar competir, agora, não apenas com as pessoas da sua região, mas do Brasil todo. E isso vai desvelar as desigualdades que existem dentro da própria educação. Até porque você concorda comigo que um estudante que estudou em Goiás não é o mesmo que um que estudou em São Paulo? 

Mariana: Definitivamente não. Até porque, se você pegar novamente, retornando ao tema do Novo Ensino Médio, que estamos discutindo, ele não foi implementado de forma igualitária em todos os Estados. 

Rebeca Calgaro: Exatamente, então isso vai provocar desigualdades sociais novamente, nesse acesso ao ensino público. Então você tem hoje, por exemplo, muitos movimentos migratórios intensificados. O estudante não conseguiu passar aqui em Goiânia, mas passou em Jataí. Beleza, esse estudante vai se mudar pra Jataí, chega lá e não consegue se sustentar, desiste da faculdade e volta para trás. Então o acesso pode até ter sido melhorado, mas a permanência ainda é um problema muito sério quando a gente fala, principalmente, de educação pública. 

Estudante revisando conteúdo de provas do 1° e 2° dia do Enem
Goiás conta com aproximadamente 150 mil inscritos no Enem 2023, segundo Inep. (Foto: Shutterstock)

Mariana: Muitos jovens, pessoas que vivenciaram o modelo tradicional do Ensino Médio, viam em 2023 a última chance deles de passar no vestibular por conta das mudanças anunciadas para 2024. No entanto, essas mudanças foram revogadas pelo Ministro da Educação no último Congresso Nacional de Jornalismo da Educação pelo Jeduca. Essa questão de mudança de informações a todo momento, de não saber onde procurar informações sobre o que vai acontecer no futuro, impacta de qual forma o estudante que está ali tentando se preparar, hoje, para o vestibular 2023? 

Rebeca Calgaro: Impacta profundamente, porque quando você tem… qual o problema disso, né? Hoje a gente tem políticas educacionais que são muito distorcidas em relação a sua função. Então, por exemplo, quando o Enem surgiu ele era uma política de governo, (era uma política se não me engano.. não sei se foi algo que o FHC inaugurou e o Lula continuou ou se foi o Lula que inaugurou, mas é naquela época do final dos anos 90 e início dos anos 2000)1 que veio como uma política de governo para entender como estava a educação no país. Quando a gente fala de uma política de governo é algo mais passageiro, então o governo vai fazer, vai usar e depois pode acabar a qualquer momento. Então, à medida que o Enem é uma política de governo e não consegue se consolidar como uma política de Estado, ele pode ser cortado a qualquer momento, ele pode deixar de servir a qualquer momento, de não ser mais isso, de sofrer modificações e etc. E, novamente, provocar um novo problema, um novo desserviço para a própria educação no país. Porque a medida em que “Ah, não vai ter mais Enem”, então o que as universidades vão fazer agora? Para quem está nesse momento, lá no Ensino Médio, querendo fazer as coisas, é um problema. 

Mas eu diria que, na minha experiência, que eu tive no Estado, eu falo que eu tive porque… assim, eu fui demitida semana passada, é até um digamos… entre aspas, um furo de reportagem. Um exemplo disso, é a presença dos psicólogos aqui no Estado de Goiás. Eles iniciaram um programa como sendo a propaganda do governo, de que teriam psicólogos nas escolas, contrataram uma OS, que contratou 80 psicólogos pro Estado inteiro. Agora em outubro, eles demitiram já mais ou menos 20 pessoas. Então eles contrataram ali em junho e agora em outubro já estão cortando e demitindo todo mundo. E aí assim… voltando, né? Fecha o parêntese. A minha experiência, sendo muito sincera com você, os alunos da escola pública nem preocupados com vestibular estão. Não estão. Isso não é uma possibilidade para eles. De verdade, eles não estão nem aí. E não é um nem aí no sentido de desprezo, é um nem aí no sentido de “Isso não é a minha realidade, não é o meu lugar”. Quando você chega na escola, o que você ouve desses alunos? Principalmente nas escolas integrais, por exemplo, “Tia eu não vou fazer vestibular não, to querendo só terminar o Ensino Médio pra arrumar um trabalho e ajudar minha mãe em casa”. Eu perguntava muito, quando eu ia conversar com esses alunos na escola, principalmente quando era um aluno que me procurava pra reclamar da vida, do tipo “A não gosto da escola, não gosto daqui”, eu perguntava pra eles “E o que você quer fazer da vida? O que você gosta de fazer? O que você pretende daqui pra frente?”, a maioria deles nem sabe o que quer fazer. Eles respondem “Tia, eu nunca pensei sobre isso”. 

Então a verdade, quando a gente fala da política do Enem, não só das avaliações, mas do Enem na educação pública é como se fosse assim: ao invés de se tornar uma coisa que é pra ser positiva, que é pra dar mais acesso, se tornou mais um fardo na vida dos professores e de quem trabalha com educação. Para os alunos não funciona, não acessa. Então os meninos não sabem nada, não querem saber nem do Enem, nem de nada. Não se preocupam em se preparar enquanto uma prova que eles tem que se preparar, estudar. E, ao mesmo tempo, pro Estado, quando ele vai lá e vê esses alunos fazendo e tem os dados, reverbera mal para o próprio Estado, que joga a culpa para os professores, que estão completamente adoecidos e não tem nada o que fazer com relação a isso. Então se torna quase um ciclo de violência mesmo.

E aí você pega… um exemplo: a gente foi proibido, quando eu ainda estava trabalhando, de entrar em turma de 9° ano e de 3° ano, porque  a gente não podia atrapalhar que esses alunos fizessem o Enem (no caso do ensino médio) ou o SAEGO (do fundamental) e o SAEB também. Eles não queriam que a gente entrasse, porque ia tirar professor de sala de aula, ele não conseguiria dar o conteúdo, então não era para entrar. Qual era a realidade desses estudantes? A maioria deles tendo crise de ansiedade quando pegava… porque na escola tem um negócio do Estado que é tipo uma caderneta, que chama Revisa Goiás, que é para eles revisarem os conteúdos dessas avaliações. Os meninos, a hora que chegavam as cadernetas, tinham crise de ansiedade porque não aguentavam mais essa pressão em cima da prova. Não é sobre a experiência que você tem de conhecimento, é assim: nós precisamos que você faça bem essa prova, porque senão nós vamos ver punidos. 

Mariana: E o Novo Ensino Médio, nesse sentido, é um agravante para a questão da evasão escolar – que sempre foi um problema muito grave no Brasil – mas com esse novo modelo, você vê essa como uma realidade mais urgente? 

Rebeca Calgaro: Com certeza. Não necessariamente o Novo Ensino Médio, mas toda a política. Ela promove a exclusão mais que a inclusão. Porque o Novo Ensino Médio, se a gente for parar pra pensar, ele é organizado curricularmente, para que o estudante tenha só aprendizado técnico. Ele não forma o estudante para o ensino superior, ele forma o estudante para sair dali e ter uma habilidade técnica, essa é a proposta do currículo. Não sei se você já chegou a ler a proposta de Goiás, como eles fizeram, mas os itinerários, eles têm coisas muito simplificadas do que são as ciências humanas, ciências da natureza. Você não tem mais o conteúdo passado de uma forma sistematizada, é como se fosse assim: você tem que aprender o básico, que é ler e fazer conta – português e matemática -, e as outras áreas do conhecimento, você vai passar por elas, vai adquirir um conhecimento muito por cima, para que você saia de uma forma mais rápida do Ensino Médio e vá para o mercado de trabalho. Se não me engano, a carga do Novo Ensino Médio aumentou, e por mais que ela tenha aumentado, não significa uma coisa positiva2. E existe um problema relacionado a isso que é a integralidade do ensino. Uma coisa que já conversei com colegas meus: quem não é a favor da integralidade do ensino são os liberais, são os neo-liberais, porque para eles sim, de fato, é vantajoso que o aluno fique menos tempo na escola, que ele entre no mercado de trabalho como uma mão de obra barata, muito cedo e estude cada vez menos. O problema não é a integralidade do ensino, o problema é a permanência. Então o fato de o Novo Ensino Médio propor, por exemplo, que o aluno fique o dia inteiro na escola, não é ruim. Porque o aluno tem que estar na escola mesmo, só que o grande problema disso é que o currículo não está associado com outras políticas de permanência, então ocorre a evasão. E isso já acontece, por exemplo, nas escolas de período integral aqui em Goiânia, em que a gente tem 200, 300 alunos, tem escola que tem 150 alunos, eles evadem porque precisam trabalhar. Então o que seria o certo? Ter formas de reter esse aluno na escola. E muito disso poderia ser evitado se a escola tivesse pessoas preparadas para fazer essa retenção, que é por exemplo, o assistente social.

Hoje, o Estado de Goiás tem duas assistentes sociais para o Estado inteiro na educação, que são concursadas. Com esse projeto do Instituto Hortense {Projeto social educacional responsável pela contratação de profissionais para o Programa de Educação Socioemocional da SEDUC}, eles contrataram mais 44 pro Estado inteiro, só que eles também já foram demitindo alguns, então… E isso foi uma coisa, por exemplo, que quando a gente entrou, brigava muito. A gente chegava na escola e tinha esse tipo de demanda: aluno que ia sair da escola, que ia evadir. A gente mandava mensagem e perguntava: o que a gente faz com esse aluno? Ele tá querendo evadir. Eu encaminho ele, para família dele receber o Bolsa Família alguma coisa assim? O próprio Estado não tinha solução pra isso, entende? Então também acontece por isso, tem a política interna do currículo, que nesse ponto específico não é ruim, que tem a integralidade do ensino, mas que não tem nenhuma política para garantir essa integralidade. 

Mariana: E essa questão afeta também a parte da infraestrutura da escola, de ter espaço adequado para receber esse aluno. Nesse sentido, a gente consegue enxergar muito mais a discrepância – como você já havia dito – entre a rede pública e a privada. Como fica a cabeça do aluno vendo isso, às vezes, uma pessoa que tem tudo aquilo e uma preparação muito grande, coisas que são direito dele, e muitas vezes não tem? Como eles ficam perante essa desigualdade tão grande em um projeto que deveria ser benéfico? 

Rebeca Calgaro: Do ponto de vista dos alunos, eu acho que não muda tanto. Acho que do ponto de vista de quem trabalha muda mais, da parte dos educadores. Do ponto de vista do aluno, eles ainda não têm maturidade, a maioria deles, para entender que eles estão deixando de ter um currículo de uma forma mais completa e complexificada, entende? Para os alunos que estão na escola, é só aula. Na cabecinha deles não é como se fosse um currículo que fosse mudar, eles têm uma visão pequena – micro – ali na escola. Só que, na própria formação deles isso fica evidente, no próprio interesse pela escola isso fica evidente. Não é uma coisa que é tão visível a princípio, porque no cotidiano deles o que vai mudar é isso: a professora X dava aula disso e agora não dá mais; a gente tinha essa matéria e agora não tem mais. Mas o aluno que está ali já prestes a fazer o Enem, que está terminando o Ensino Médio, a preocupação dele é principalmente como arrumar um emprego. Quando o Novo Ensino Médio faz isso, ele contribui para essa via de expulsar o aluno do curso superior e jogar no mercado, porque o que deveria ser feito é o contrário: reter esse aluno na escola pra ele poder ter mais tempo de estudo, poder se dedicar e poder fazer o Enem, para conseguir entrar em uma universidade pública e garantir a continuidade de estudos dele. Só que o movimento é o contrário, de expulsão mesmo. 

E uma coisa que eu vejo que é um grande problema é o Projeto de Vida no Novo Ensino Médio – que a princípio eu não acho ruim. Eu acho que essa disciplina deveria existir, só que eu acho que a forma como ela foi criada é que foi um erro. Ela foi criada como uma disciplina solta, jogada dentro do currículo. Só que como a gente não tem um sistema único de educação no Brasil, cada Estado vai montar essa disciplina de forma autônoma. E aí o que começou a acontecer: alguns Estados criaram currículos um pouco melhores, que buscam esse tipo de orientação dos alunos e eles saíram mais a frente, no sentido de Projeto de Vida ser uma disciplina para orientar o adolescente na carreira e na vida dele. Alguns lugares – muito pouco no Brasil – conseguiram fazer isso de uma forma um pouco melhor. E quando você tem isso, acontecem coisas como, por exemplo, o que aconteceu comigo, que é ali na disciplina a professora jogar esse tipo de questionamento e você parar para pensar. E aí você consegue fazer essa reflexão. Só que na maioria dos casos é o oposto, não tem material. E o que o estado faz? Compra material ruim, só pra falar que tem. Os professores chegam e não sabem usar, porque eles não foram nem preparados pra isso. Orientação profissional é uma coisa de natureza psicológica, é uma coisa que o psicólogo faz, nenhum outro profissional sabe fazer. Então eles não sabem, né? Fica essa coisa meio solta e aí o professor vai dando aula do jeito que ele consegue. E essas disciplinas são pouco aproveitadas. Eu acho que o correto é que essa disciplina de Projeto de Vida entrasse no currículo como uma disciplina que devesse ser dada por psicólogos licenciados, porque hoje existe a possibilidade de ser licenciado em psicologia. Eu imagino que se fosse assim, a função dessa disciplina teria um melhor aproveitamento dos próprios estudantes e isso seria muito positivo inclusive, para evitar, por exemplo, a presença do psicólogo como um clínico. Porque como eu estava nas escolas, hoje, como eu não estava em nenhuma disciplina, eles queriam me enfiar numa sala, me deixar lá e chamar os alunos que eles consideram problemáticos para vir falar comigo, como se eu fosse fazer um atendimento clínico. E na minha concepção, a disciplina de Projeto de Vida dentro do currículo, ela é uma forma de tirar o psicólogo desse espaço clínico e colocar ele como parte do próprio Ensino Médio, da própria educação mesmo. Então nesse ponto teria uma saída, mas para ter essa saída teria que ter disposição política, mas não tem. 

Mariana: Nessa questão entra o que você falou mais cedo de ter tido a proposta em Goiás, de que as escolas teriam psicólogos para dar esse suporte, mas assim que foram contratados já começam os processos de demissão em massa. 

Rebeca Calgaro: Exatamente. E era esse o ponto em que eu queria chegar sobre o Projeto de Vida, de que eu acho que, entre aspas, o Projeto de Vida seria uma saída para lidar com a situação. 

Mariana: Uma outra particularidade sobre o Enem deste ano de 2023 é que o Inep divulgou a poucos dias que essa é a primeira edição em que as provas serão totalmente coloridas. Você vê isso como um ponto positivo, de inclusão do aluno, por exemplo, no quesito acessibilidade, ou mesmo na questão da exaustão pelo longo tempo de prova. Você acha que essa questão da prova colorida auxilia de alguma forma a assimilação das informações? 

Rebeca Calgaro: Acho muito difícil dar uma opinião sobre isso, porque eu não tenho evidência nenhuma para te dar assim e te afirmar se vai ser melhor ou pior. Se eles tivessem ofertado como opção para quem possui algum tipo de deficiência visual, intelectual ou alguma coisa do tipo, isso entraria como uma política de inclusão. Quando eles fazem isso na prova de todo mundo, é muito difícil eu te dar uma evidência de que isso vai ou não piorar ou melhorar o desempenho dos alunos na prova.

Mariana: E considerando todas essas questões, esse ano realmente vai ser atípico para o vestibulando, por ter, justamente, essa discrepância entre o Novo Ensino Médio e a prova tradicional. Ano que vem, provavelmente, essa situação vai se repetir também. Qual é a melhor forma de apoiar o estudante que está enfrentando essa situação? 

Rebeca Calgaro: Eu acho que a melhor forma de apoiar qualquer estudante que está vivendo essas mudanças no Ensino Médio, é incentivá-lo a seguir uma carreira. Porque o problema é que muitas vezes o estudante, principalmente esse que não foi preparado desde lá no Ensino Médio, no Projeto de Vida, que ele precisava pensar sobre o futuro e a carreira dele, vai ter uma visão imediatista em relação ao Enem. Vai virar só mais uma prova. Eu acho que o melhor apoio que se pode dar, principalmente para o estudante da escola pública, é mostrar que não é sobre uma prova, é sobre a carreira dele, a vida, os sonhos, o que ele quer construir. Assim, eu entendo que, na escola, o que a gente pode fazer é isso. E se fosse para ampliar, teria que ter mais coisas, porque o aluno, para ele saber que precisa fazer o Enem, que ele precisa ter uma nota boa para passar num vestibular, para conseguir entrar em uma Universidade, ele precisa saber que essa Universidade existe e muitos nem sabem que existe. Então uma coisa que é muito triste mesmo, quando eu chegava em uma escola pública que eu atendia (eu atendia 8) – eu fui aluna de escola pública, de CEPI {Centro de Ensino em Período Integral}, estudei no Liceu e no Pré Universitário – e aí os professores falavam assim: ‘Nossa, você tem que passar na sala e você tem que falar que você foi estudante de escola pública, e que formou na UFG, está fazendo mestrado na UnB. Quem sabe assim eles não se incentivam? Porque esses meninos, eles acham que nunca vão conseguir’. Alguns nem sabiam, eles nem ligavam, mas por quê? Porque… eu não gosto de criticar professor, eu acho um desserviço psicólogo que faz isso, mas assim, muitas vezes nem os próprios professores estão dando as disciplinas considerando isso como uma possibilidade. Por outros fatores, não por eles. Eu acho que é isso, não é só uma prova, é a vida deles que está em jogo.

  1. A primeira edição do Enem ocorreu em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e com Paulo Renato de Souza no Ministério da Educação. A prova tinha por objetivo avaliar o desempenho dos estudantes no Ensino Médio. Em 2004, o Enem adota um caráter mais parecido com o que se conhece hoje, como um processo seletivo para a entrada em instituições de ensino superior. Nesse ano também foi instituído o Programa Universidade para Todos (Prouni). ↩︎
  2. A carga horária na proposta do Novo Ensino Médio passou de 2.400 horas, para 3.000 horas ao fim dos três anos. ↩︎

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