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Mesmo lançado há três anos, Rito de passá, primeiro álbum de estúdio de MC Tha, consegue ser surpreendentemente inédito. Em entrevista à Revista Continente, a cantora classificou sua obra como uma vontade de “desfrutar do que o Brasil tem a agregar”, e assim as dez músicas que compõem o projeto vão sendo apresentadas a quem as ouve como uma intrincada montagem de sonoridades. O álbum é o encontro do funk com tons de tecnobrega, pop e MPB. Ainda na entrevista à Revista Continente, Tha demonstra seu desejo de alcançar o público de uma maneira diferente com suas letras: “Fazer com que a periferia se enxergue pra compreender de onde vêm, a cor que possuem.” As pautas que tratam de identidade já se constituem como marca nerval do trabalho de Thais.

Apesar dos percalços que uma carreira de artista independente no Brasil possa sofrer, Tha acumula méritos e conquistas em sua trajetória artística. Seus primeiros trabalhos aos quais um grande público pode conhecê-la vieram a partir de 2014. Com um titulo quase premonitório, por assim dizer, o single Olha quem chegou abriu as portas para som e ritmo de MC Tha, não à toa o clipe da música conta com quase 200 mil visualizações no Youtube. Em 2018 a cantora lança o EP Versões, que conta com versões acústicas de seus quatro singles lançados até aquele momento.

Divulgação do álbum Rito de passá. Foto: Reprodução/Spotify

ABRAM-SE OS CAMINHOS

Para falarmos da obra de MC Tha é imprescindível que abordemos a função da religiosidade na vida da cantora. A cosmovisão de mundo oferecida pela Umbanda é o ponto estruturante de todo o álbum. Na capa do disco, uma Iansã do século XXI se apresenta com chinelas, boné e um óculos da marca Juliette, importante símbolo de status nas periferias brasileiras. A mistura de elementos a princípio não possuía um tom tão religioso: “Eu não tinha a ideia de representar nenhum orixá. Só que, no dia da sessão de fotos, me veio à cabeça que a imagem produzida era a de uma Iansã pós-moderna”. – Conta Tha à Revista Continente. 

O antropólogo e professor da USP, Gregório Queiroz, destaca o papel central da música nos ritos de incorporação da Umbanda.  “Ao som dos atabaques e nos movimentos da dança é que “chegam os “santos…as entidades. A música e a dança são fundamentais nesse processo, pois facilitam a entrega do médium ao rito”, explica. Queiroz conclui em seu artigo que a música, somada ao movimento corporal e ao contexto social, acabam por favorecer a alteração de identidade. “A música ajuda ao que denomino ‘deslizamento’ entre as identidades.

A cada faixa de Rito de Passá, Mc Tha executa este deslizamento de identidades. Dos relatos mais íntimos, presentes nas Faixa Despedida e Maria Bonita, a momentos de pura sensualidade e afirmação como em Corpo Quente e Avisa lá. Uma obra que já nasce histórica, rompendo quaisquer que fossem os nichos que poderiam lhe ser atribuídos como música de terreiro ou apenas um cd de funk e consolida-se como um manifesto marcado pelo gênero, pela raça, pela classe e pelo olhar sutil da artista.

Divulgação do álbum Rito de passá. Foto: Reprodução/Spotify

CANTAR E DANÇAR PRA SAUDAR O TEMPO QUE VIRÁ, QUE FOI, QUE ESTÁ

Para descrever o impacto de Rito de passá julgo útil fazer um exercício de aproximação entre o álbum e a obra literária do escritor brasileiro Fábio Kabral, Rito de Passagem. O livro tornou-se um marco no início do movimento afrofuturista do país, inaugurando uma vertente de um pensamento estético revolucionário no Brasil . Assim, ao meu ver, é a obra de MC Tha, um marco que leva o funk no encontro direto com as discussões sobre o afrofuturismo. Como Kabral, Tha explora a cultura, vivência e religiosidade da África e da diáspora africana para contar a história de crescimento e luta daqueles que vivem nas periferias da vida. Como os personagens do livro, os eu-líricos das músicas deste álbum não se privam de falar de sonhos e ambições, de desejos e vontades e de superar as mazelas que vivemos como pessoas vindas de uma condição de subalternização que a sociedade nos impõe

Surgido em 1993, nos Estados Unidos, o termo afrofuturismo tenta nomear um movimento estético, cultural, filosófico e literário que se propõe a reexaminar o passado da história dos povos pretos e das sociedades africanas propondo assim um futuro otimista e afrocentrado onde a existência negra exerce todas as sua potencialidades. Como resume MC Tha, o afrofuturismo saúda o Tempo que virá,  o que foi e o que já está.

Compreender o movimento do afrofuturismo é essencial para absorver toda a potencialidade conceitual do álbum Rito de passá. Aqui as referências da religiosidade que vêm de uma matriz africana se colocam tão presentes, porém tão filtradas pela singularidade das experiências da artista que para quem ouve fica a sensação de que efetivamente o funk nasceu nos terreiros de Umbanda do Brasil. 

Para a revista Veja SP, MC Tha explica que um de seus objetivos com o álbum é “Fazer as pazes” entre religião, a periferia e o funk “Eu entendo que o deus da periferia hoje em dia é um deus evangélico – é só pegar a quantidade de igrejas evangélicas que tem na periferia. Então, por mais que seja muito óbvio, para a gente que tem essa pesquisa, o quanto as duas coisas são semelhantes, ao mesmo tempo parece que o funk está de costas para o terreiro”, diz.

Clipe de Despedida. Foto: Reprodução/Youtube

 

EU SOU O LAÇO BEM DADO

Para concluir eu utilizo do insight que a revista Veja SP trouxe sobre MC Tha, que a estabelece como uma ancestral do futuro. Em seu primeiro álbum de estúdio a artista saúda os que vieram antes, resgatando suas referências e imaginando o novo por vir. A sua composição assemelha-se a consagrados artistas como Alcione e Mateus Aleluia, quando recorre a sonoridade dos terreiros com músicas que lembram pontos para entidades. Sua imagem inspira-se nos visuais marcantes de Clara Nunes e Fafá de Belém. Sua originalidade tempera tudo com um toque inusitado e único.  A sonoridade do álbum é suave, um tom etéreo e soproso paira nos vocais da artistas e conta com músicas que conversam entre si. Uma obra completa com uma construção sólida, que posiciona o funk brasileiro em um novo patamar.

Music Filme Remanescente com músicas do álbum Rito de Passá. Vídeo: Reprodução/Youtube

Ficha Técnica:

Formatos: Streaming, Vinil (Revista Noise) Gravadora: Elemess / Noize (Vinil) Produção: Jaloo, MalkaMU540, Pedrowl, Tide DJ e Ubunto

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