Desafios do Cinema Brasileiro: uma luta contra o hollywoodiano

Dados da Ancine mostram a predominância do público nos filmes internacionais em relação às produções nacionais nos cinemas brasileiros.
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As obras cinematográficas brasileiras fazem parte de umas atividades culturais mais importantes para a identidade brasileira. Porém, será que hoje o público se interessa por filmes nacionais? 

Imagem por Freepik

Um estudo realizado pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha em junho de 2021, apontam que a população brasileira tem pouco hábito de assistir produções do Brasil. A pesquisa mostra que 19% dos brasileiros nunca assistiram um filme nacional no cinema, e que 57% viram poucas vezes. Enquanto, apenas 24% da população assistiu obras brasileiras por várias vezes em uma sala de cinema. 

O estudo foi uma pesquisa quantitativa sobre hábitos culturais. Foram realizadas 2.276 entrevistas em todo Brasil, com entrevistados homens e mulheres, com idade entre 16 e 65 anos e integrantes de todas as classes econômicas. Foi utilizado um método de abordagem telefônica mediante aplicação de questionário estruturado, com cerca de 33 minutos de duração. 

Visto que a taxa de entrevistados que frequentam o cinema para ver uma obra nacional é baixa, pode-se afirmar que a população rejeita o filme brasileiro? 

A Agência Nacional do Cinema – Ancine, fornece dados sobre os resultados do Cinema Brasileiro no decorrer dos anos. Neles, constatou-se que, durante os anos de 2021 até junho de 2023, a participação do público brasileiro nos filmes nacionais, em cada um desses anos, foi menor que 5% em relação às obras estrangeiras.

Veja a proporção do público, em obras estrangeiras e nacionais, nos anos de 2021, 2022 e 2023:

2021. Fonte: Ancine
2022. Fonte: Ancine
2023. Fonte: Ancine

Acesse AQUI para encontrar esses e outros dados fornecidos pela Ancine.

PROBLEMAS

Não pode-se negar que o cinema nacional passa por várias dificuldades, pela falta de investimento, falta de políticas de incentivos e também pela baixa visibilidade. A indústria cinematográfica brasileira é única, enfrenta altos e baixos é claro, que dificulta sua afirmação nessa área. 

Porém esses podem não ser os únicos desafios enfrentados pelo cinema nacional. Os dados fornecidos pela Ancine também mostram que mais de 63% dos filmes exibidos entre 2021 e julho de 2023 são estrangeiros.

Barbie x Oppenheimer. Filmes de Hollywood que estrem dia 20 de julho prometem “batalha” de bilheteria. Foto por: The Wollywood Reporter

Desse modo, a presença dos filmes estrangeiros, principalmente os norte-americanos de Hollywood, é a principal causadora que pode ofuscar o cinema nacional? 

Lusa Silvestre, roteirista, redator publicitário e cronista, indicado 5 vezes por Melhor Roteiro Adaptado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, uma delas esse ano, pelo filme Medida Provisória, e vencedor por Melhor Roteiro Original em 2009 e 2018, pelos filmes Estômago e A Glória e a Graça, discorre sobre a disputa com os filmes Hollywoodianos:

“Hoje o cinema exibe dois tipos de filme: os blockbusters (obras de entretenimento (geralmente filmes) que alcança grande popularidade e enorme lucro financeiro)   e os filmes de arte. Os blockbusters representam a maioria do público que vai ao cinema. As pessoas pagam caro por um ingresso, e portanto querem ver o valor do seu dinheiro na tela. Blockbusters têm explosão, batida de carro, som saindo por todos os lados, é o “value for money” (custo benefício) do ingresso do espectador.”

O cineasta Aristeu Araújo, graduado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que teve o seu filme Por que Corro?, premiado como Melhor Filme em Tomada Única e Melhor Montagem no 7º Festival Internacional de Cinema de Super 8 de Curitiba, reflete sobre a enorme presença dos filmes estrangeiros em relação aos nacionais:

“Temos uma indústria quase que sem regulação, aberta ao capital estrangeiro sem qualquer contrapeso. Blockbusters chegam ao Brasil e de uma vez ocupam quase todas as salas de cinema. Trata-se de concorrência desleal. Fora que esses filmes chegam ao país com muito dinheiro para gastar em distribuição, sem dúvida o maior gargalo do cinema brasileiro”.

“É comum um blockbuster ocupar cerca de três mil salas ao mesmo tempo. Isso deixa o público sem opção de escolha. Qual filme brasileiro teria esse poder de concorrência, quando o normal é chegar às telas com dez cópias?”, indagou Aristeu Araújo.

Ele acredita que as produções nacionais perdem para marketing dos filmes estrangeiros, também defende uma cota para os filmes brasileiros nas salas de cinema

“Entendo que o Governo precisa delimitar uma cota de tela mais ousada, restringindo os mega lançamentos americanos a menos salas e garantindo a exibição de filmes brasileiros em mais telas e por mais tempo. O público precisa de contato para rever seus preconceitos”.
Imagem por: Legião dos Heróis

Já é notório quando se vai ao cinema e a maioria dos filmes que se vê em cartaz são obras estrangeiras. Por conseguinte, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, promoveu uma medida que foi aprovada em 2021. É um projeto que obriga a exibição comercial nas salas de cinema, de filmes nacionais.

Jarleo Barbosa, cineasta goiano que dirigiu “Hotel Mundial” e “Julie, Agosto, Setembro” destaca a disparidade entre os filmes nacionais e internacionais:

“É importante contextualizar na assimetria orçamentária entre um projeto estrangeiro, sobretudo norte americano, com um brasileiro. Isso repercute diretamente na campanha de marketing do filme. O último Avatar, por exemplo, teve custo de produção de 350 milhões de dólares, mas estima-se que se tenha gastado mais que o dobro disso com marketing e publicidade. Ou seja, o alcance e capilaridade desses filmes é uma coisa muito difícil de competir.”

Para ter uma noção entre a disparidade de bilheteria entre os blockbusters e os filmes nacionais, a 20° obra internacional mais assistida no Brasil em 2022 foi Elvis, com um público total de mais de 1 milhão de pessoas. Enquanto a obra nacional mais assistida foi Turma da Mônica: Lições, com menos de 550 mil telespectadores no total. Esses dados foram divulgados  no Informe do Mercado Cinematográfico de 2022 feito pela Ancine.

FATORES

Logo, quais são as raízes e os fundamentos que podem causar esse desapego do público com o cinema nacional? 

Aristeu Araújo, também reflete sobre esses motores que podem afastar o público brasileiro dos filmes nacionais: 

“São muitos os fatores que acabam por afastar o público brasileiro dos filmes nacionais. Isso não é uma análise simples de fazer. Em primeiro lugar, o Brasil tem poucas salas de cinema. Hoje temos cerca de 3400 salas, quando na década de 1970 tínhamos mais ou menos o mesmo número. Levando em consideração o crescimento da população nos últimos 40/50 anos, houve uma diminuição significativa do acesso às salas”.

O anuário estatístico do cinema brasileiro de 2021, também produzido pela Ancine, comprova a fala do cineasta. Visto que, os dados mostram países com populações menores que o Brasil, com maior número de salas de cinema. Um exemplo, é o México, que possuía 7361 salas em 2021, salas enquanto o Brasil possuía 3266. É notório destacar que o Brasil tinha na época, quase que dobro da população mexicano. 

Além disso, a distribuição de cinemas no Brasil não é igualitária. De acordo com a Ancine, no último levantamento de dados sobre as salas de exibição, somente 7,9% das cidades brasileiras possuem salas de cinema.

“Esses dados são importantes porque nos dizem duas coisas de cara: primeiro, que não há cinema para o público; segundo que, se não há cinema, como que o público poderia se interessar pelo cinema nacional?” Mesmo assim há uma falácia nesse entendimento de que o brasileiro não gosta de filme feito no Brasil. Há uma infinidade de filmes muito bem sucedidos comercialmente (Dona Flor e Seus Dois Maridos, Cidade de Deus, Central do Brasil, Tropa de Elite) entre muitos outros exemplos”. Concluiu Aristeu Araújo.

Marcelo Gomes, ator e produtor que concluiu sua formação de teatro e artes do corpo na Dinamarca na CIA Odin Teatret com o diretor Eugenio Barba, que atuou e produziu o curta-metragem “Jadzia”com Laura Cardoso (2018 a 2020) filme com mais de 30 prêmios em festivais internacionais, enaltece o cinema nacional porém questiona a dificuldade de comercialização dos projetos produzidos: 

“Acredito que o cinema brasileiro é muito plural. Ele é muito diverso, em todos os tipos de temáticas abordadas, eu tenho amigos fazendo séries incríveis para a internet, eu acho que isso também faz parte do cinema. É um formato streaming de mobile,então nós somos muito plurais. O grande grande problema que você faz com esse produto produzido? Para onde vai? Acaba que nós temos poucas opções e  ficamos muito reféns de saber onde a gente consegue vender o filme, para quem vender e comprar”.
Imagem por: IMDB

“Temos muitos filmes correndo festivais do mundo, a gente tem o nosso último produto que é o Jadzia, que é um curta-metragem com a Laura Cardoso que nós gravamos durante três anos entre Brasil e Alemanha, nós ganhamos mais de 70 prêmios internacionais. Há pouquíssima relevância e pouquíssimo espaço dentro do cenário brasileiro, os nossos maiores prêmios estão na Europa e Ásia, então é muito interessante frisar isso. Nós tivemos nenhum incentivo, foi tudo com verba direta, com pequenos patrocinadores para poder fazer esse filme poético”. Concluiu Marcelo Gomes

O cineasta Jarleo Barbosa analisa a participação do público nos filmes nacionais, discorrendo sobre a mudança do hábito de consumo do público:

“Ir aos cinemas já foi um hábito popular, mas hoje, com o fechamento dos cinemas de rua, a maior parte dos cinemas migrou para dentro dos shoppings. Esses que são frequentados por um recorte socioeconômico da população, o que me faz pensar que talvez os filmes americanos dialoguem de forma mais direta com essa estética-classe-média que frequenta os grandes centros comerciais e tendem a uma certa homogeneização do gosto. Nessa perspectiva, pensar em cinema nacional, num país gigante como o Brasil, com suas variações e especificidades culturais, o ambiente amorfo das salas de cinema, talvez não seja o ambiente mais propício para se revelar e assistir esses muitos ‘Brasis’ “.

ALAVANCA E FREAMENTO

É evidente que o cinema nacional necessita de incentivos, visibilidade e investimento. Mas, antes de tudo, é necessário não obstruir e reprimir seu desenvolvimento. 

De acordo com o Sistema de Acesso às Leis de Incentivo à Cultura, o número de projetos aprovados via Lei Rouanet caiu mais de um terço sob o governo de Bolsonaro. Leia mais sobre o rombo no orçamento da cultura da Revista Piauí.

Charge por: Amarildo Lima (@amarildocharges).

Lusa Silvestre acredita que o incentivo para o cinema nacional voltará, e ressalta os problemas enfrentados também pela cultura, nos últimos anos:

“O incentivo está voltando. E diga-se: dinheiro que o próprio cinema movimenta. Não é “dinheiro do governo”. O que aconteceu, e isso, sim, foi um desafio, é que o último governo foi de destruição, não procurando construir nada no lugar. Isso aconteceu com a cultura, com a saúde, com a educação, com a ciência, com o meio ambiente e com a economia”.

Jarleo Barbosa retrata uma falta de consciência generalizada no poder do cinema:

“Existe por parte dos governos essa falta de entendimento, o que implica na falta de sensibilidade para pensar políticas públicas de médio e longo prazo, evitando que caiamos nos ciclos de falta produção que o cinema nacional já experimentou tantas vezes”.

Por fim, ele ressalta a necessidade de se pensar na formação do público, desde a escola:

“Numa era de tantas imagens, vídeos, é preciso formar as crianças para pensarem o mundo através do audiovisual e se tornarem públicos qualificados. São essas pessoas que serão a plateia que o cinema Brasileiro tanto almeja.”

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